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Cada vez que conheço um novo mito indígena, confirmo minha percepção de que em nosso acervo mitológico existe, postos de forma simples e direta, embora metaforicamente (paradoxal? é assim mesmo!), alguns princípios básicos sistematizados pela Psicanálise, e pela Filosofia mais antiga.
Ontem fui conhecer Alberto Mussa que acaba de lançar o livro “Meu Destino é Ser Onça” (Ed. Record) um estudo detalhado e apuradíssimo sobre o primeiro mito indígena transcrito, por um frade francês nos idos de 1550.
Mussa recebeu na Livraria da Travessa, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (a quem ele dedicou esse trabalho) e ambos nos deram, à platéia, o presente de ouvir seus pensamentos instigantes e valiosos. É mesmo um bálsamo, poder sair da lentidão corrosiva do lugar comum de conversas triviais do dia a dia e mergulhar um pouquinho naquilo que está aqui, o tempo todo, mas a maioria de nós teima em não querer ver: a possibilidade da troca humana que vivifica e energiza.
A propósito do que não se ousa ver, Eduardo citou o interessante fato de que, na intenção de fundar nas novas terras descobertas (estas aqui) a França Antártica – um lugar ideal de conciliação de diferenças ideológicas – os franceses (católicos e protestantes) instalados na ilha de Villegaignon, apenas se entreolhavam, sem poder ver aquilo pelo que estavam rodeados, reforçando, nesse espelhamento, suas semelhanças, cegos portanto ao outro. Embora aparentemente buscando criar, aqui, um espaço de concórdia, os franceses simplesmente se recusavam a enxergar a verdadeira oportunidade de estar num novo sítio, quando esqueciam a possibilidade de aprender com o povo nativo, que encontraram neste Novo Mundo.
Ao invés disso (e aí já entra a minha reflexão) tratavam rapidamente de traduzir, buscando sistematizar, enquadrar e consequentemente reduzir a cultura local, dentro de um modelo de pensamento que, por conhecido, parecia não oferecer riscos. Como se esse espaço, do autêntico pensar possa de alguma forma ser seguro!
O fato é que, agindo assim, os europeus faziam justamente o caminho oposto àquele ensinado pelo mito guarani que fala da Terra sem Mal. O encontro desse lugar ideal, ensinam nossos ancestrais ameríndios, se faz através do confronto corajoso com o inimigo, que é nosso próprio negativo ou aspecto sombrio, que precisamos “incorporar”.
No papo, que seguiu fluido, falou-se das devorações contemporâneas, que a gente finge que não vê, e pelas quais a gente não exprime tão enfaticamente nosso nojo, quanto fazemos quando ouvimos dizer do canibalismo dos indígenas.
E então, tratando daquilo que nos é estranho – o medonho, o ameaçador – novamente revisito as páginas freudianas e outras tantas filosóficas, para reafirmar a sabedoria de nossos antepassados indígenas e de suas “historinhas”, muitas vezes tomadas como sem sentido, só porque não parecem atender à lógica que dominamos.
A um dado momento, alguém na platéia falou da autopermissão para fazer ficção com mito. Difícil pra mim segurar a língua, que, apressada, quer sempre vomitar indignação pelo que considero inadequado , quase desrespeitoso. “Tupã não ia se zangar…”, dizia a moça, se o autor tivesse ousado ficcionar o mito. – Ai, ai, ai… – deixa pra lá…
Sem por isso perder o tom, voltando a falar a respeito da singularidade e importância do idioma Tupi, Alberto Mussa ressaltou o caráter afetivo da linguagem indígena, segundo ele já praticamente irrecuperável. (Será? Não serão os mitos a protolinguagem capaz de reavivar a afetividade e outras características singulares da linguagem indígena?)
Eduardo confirmou o uso de atributos possessivos na língua Tupi: que não se fala de algo, sem atribuir esse algo a alguém ou a alguma coisa. Achei interessantíssima a informação! Mais me passou a idéia de comprometimento entre os seres, do que propriamente do sentido de posse.
Ocorre-me pensar, então, que pode haver, aí, uma outra lição importante a aprender. E que toda a discussão sobre a posse e o controle do conhecimento que o advento da Internet trouxe à luz, passaria a ter uma conotação diferente se pensássemos, por exemplo, em vinculação, ao invés de em linkagem.
Muitas vezes, enquanto ouvia, tive vontade de fazer uma pergunta bem fundamental aos dois expositores: – O que é mito para você? Mas faltou-me espontaneidade, talvez e eu não perguntei.
Bem que passamos bem perto dessa questão, quando se falava da impossibilidade de encontrar a origem do mito. E por alguma razão, ninguém ousou falar em atemporalidade. Afinal, alternando o lado em que se sentou, entre palestrantes e ouvintes, sempre em oposição a algum dos campos, esteve o tempo todo, ali, evocada pelo mito e nomeada pelas considerações, aquela que melhor define o que escapa à inscrição do Tempo: a Morte.
Alberto Mussa confessa em seu texto, de uma generosidade exemplar, que seu caminho de criação neste livro foi trilhado, recompondo, com fragmentos dispersos, qual em minuciosa arqueologia, o corpo do mito transcrito, em que pareciam faltar pedaços. E, que com seu sistema apurado de reconstrução, pode ir confirmando a adequação de cada montagem.
Lembraram-me, suas palavras, as da psicanalista e escritora Clarissa Pínkola Estés, recolhendo “ossos” para formar seu “lobo”, a energia primitiva ou arcabouço das histórias que compõem o acervo cultural universal.
Bem, concluo, no recobrar de meu entusiasmo pela manhã, que meu destino é ser índio. E o assumo.
Mas voltarei ao tema. Quero mais!

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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