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Possuída pelas imagens que me chegam, da tragédia de agora, escorro contigo, amiga terra, estagnando minha energia na falta de destino que mostre um sentido pra tanta dor. Com a argila sangrenta que me expõe pelo avesso, deixo de ser fértil e me torno a mãe destruidora que imobiliza e devora.

Volta-me, saudosa, mas quase esquecida, a lembrança da gigantesca cambalhota cósmica que percebi, faz tempo, no encontro das montanhas do Vale do Rio Preto, e da qual nunca consegui explicar a força, que me impactou e comoveu, quase ao êxtase

Mas as águas que me carregam, hoje, torrencialmente, me empoçam no mesmo mangue onde descobri a força dos caranguejos, pulsando na minha infância, afinada com o fabuloso órgão universal que, desde tão cedo, me permitiu ouvir a melodia do silêncio.

Bem depois, à beira do abismo, no que se usa chamar a Independência de Petrópolis (e de onde se pode ver a deslumbrante paisagem da cidade litorânea inteirinha escancarada lá embaixo) sob um céu branco e densamente opaco da chuva longamente armazenada, pronta a se tornar mais e mais desabamento e dor, eu enxerguei (e profetizei em blasfêmico alto tom) um gigantesco desfazer-se das montanhas, no futuro que viria inevitável. Faz tempo que ecoou no espaço tal vaticínio, e ainda lembro o horror que aquela visão/lampejo me trouxe, então…

Foi bem antes disso que, no bom clima de Nogueira, saí um dia, ao anoitecer, para namorar, levando comigo meus filhos, amados companheiros, e muita leveza no coração e, na volta, não havia mais caminho a percorrer. Um pé d’água repentino arrancara e amontoara os paralelepípidos da estrada, transformando-a, em pilhas e pilhas de obstáculos intransponíveis e apagando a possibilidade de acesso ao lar. Foram uma visão e uma vivência tão absurdas, quanto impossíveis de esquecer.

Venho assistindo a força das águas desde o final de novembro passado, sabendo que seria inevitável deixar-me encharcar por essa paixão contagiosa, que só crescia no ar, ameaçadora. Da janela, pinguei densa, nas pesadas e grossas gotas da chuva ininterrupta e, suave, na singeleza da neblina de dias e dias, quando a natureza ruidosa ou silenciosamente, veio anunciando este pranto convulso tão maior, já suspenso no ar e pronto para desabar.

Agora estou aqui, totalmente impotente, longe de meu chão, isolada de minhas convicções, apenas ouvindo, ouvindo e ouvindo explicações, lamentos, revolta e notícias desencontradas.

Queria poder estar escutando minha terra. Queria poder estar olhando cara a cara para ela, buscando prescrutar em seu semblante inconfundível, sua mais nova e urgente comunicação.

Sinto falta dela, daqui, onde me retém o medo, a cautela e onde me cerca o estranhamento.

Estendo mais e mais meu coração, mas não chega a mim a brisa capaz de transportá-lo até o Retiro e estendê-lo no varal, para que dance com as borboletas e gorjeie com os passarinhos, misturando-se, no infinito do tempo, ao arco-íris do monte Ararat e selando o compromisso de harmonia, com um graveto ainda verde da oliveira cultivada por meus ancestrais.

Enquanto isso, doem em mim as incontáveis chagas abertas na terra ferida. A água/sangue não deixa que cicatrizem, sem curar, os antigos ferimentos causadas por descuido e por cegueira incalculáveis.

Sei que hoje a lua esteve cheia em alguma camada, abafada por tantas outras coberturas, no céu empapado de nuvens sufocantes. Queria tê-la visto, clara, para lembrar-lhe o quanto precisamos do luar. E para aproveitar sua luz, como farol, que me levasse ao possível caminho, ainda desconhecido, que me espera, intacto, na volta para casa.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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