J. A. Horta da Silva 24 de janeiro de 2011

              
                (Conto)

                                       

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O ciúme é uma manifestação irracional de insegurança que vive em simbiose com a dúvida. O ciúme só acaba, quando a dúvida se esgota na abundância da multiplicidade das formas de que se reveste. A dúvida tem um ar iracundo e, não raramente, transforma-se no gérmen que fermenta o ódio e clama vingança, impulsionado por uma aura de loucura. Carlos Mendonça não sentia exactamente este desígnio da vida, mas reconhecia que habitava, em si, um anseio de oculta inocência, igualmente perversa, que não exigia uma satisfação por parte de Júlia mas, apenas, o seu regresso. A idade das maleitas resultantes das brincadeiras de Cupido perdera-se no tempo, mas ela fazia-lhe falta e esta singularidade exigia mais do que resignação. Tinha de a convidar a voltar, mesmo que ela também pertencesse a outros. «Acima de tudo, está a qualidade da minha vida e não a vida que ela leva longe dos meus olhares» argumentava para o íntimo.

Desceu a azinhaga, como em outras ocasiões em que a procurou, mas desta feita não ia nem acirrado nem esmorecido, apenas meditativo. Aliás, naquele fim de tarde, soturno e carregado de nuvens, havia no ar uma melancolia armadilhada, uma paz que atemorizava e seduzia. Num passo pachorrento, virou a esquina junto ao poste da luz que acabara de se acender e olhou a encosta recortada por serventias e pontilhada de casario mas, em vez de dar com a casa de Júlia, deu com o Artur Ferreira, que surgiu cabisbaixo e ensimesmado. Há mais de quinze dias que não se viam. Tudo começara naquela desconversa a três, durante o jantar. Pararam em frente um do outro sem soltar um fiozinho de voz a pensar mal do acaso que os entalou entre tão despropositados varais. O Artur Ferreira estava pálido e exibia uma expressão esfomeada de prazer, o que contrariava a sua maneira de estar. A estranheza física e psicológica interpôs-se entre os dois, até que Mendonça quebrou a inércia e perguntou sem a noção do ridículo:

– Tu por aqui?
– Eu piso os meus terrenos – respondeu Artur com uma voz presa por um mal-estar amarrado ao peito.
– Estás doente? – Insistiu Carlos Mendonça, dando a mão à bonomia da suposição.
– Por que perguntas isso? – Questionou Artur surpreendido.
– Acho-te abatido. – Retorquiu Carlos com uma dose de sarcasmo, que arrepiou a probidade.
– E não é para andar? Depois do que se passou e do que se passa.
– Do que se passou sei eu, do que se passa não sei! Estive fora durante duas semanas e não sou adivinho. Melhor dizendo, sei que a Júlia nunca mais foi trabalhar desde que tivemos aquele desaguisado durante a hora de jantar. Ciúmes patetas entre dois velhos amigos. O pior é que me fui embora e, de volta, vejo tudo tal como deixei ficar. Preciso de um esclarecimento. Não queres lá ir a casa dela, comigo?
– Tu não reconheces a vergonha, pobre Carlos. Ainda bem que a vida te proporcionou ser corno ainda novo. Criaste resistências. Sabes o que costumo fazer para minimizar a dor?
– Não! Não sei! – Acrescentou Carlos Mendonça ignorando as palavras ofensivas do amigo.
– Penso no sofrimento que deves ter tido quando a tua mulher se pisgou, e assim fico melhor. Quem havia de dizer que a Julita fazia jeitos pelas esquinas; uma sonsa de aparência!

O Noronha era um homem perturbado. Olhou as pedras da calçada, como se tivesse deixado cair alguma coisa, depois elevou os olhos para a luz do candeeiro, onde se divisava uma poalha de mosquitos, a seguir perscrutou a escuridão de um lado e do outro da azinhaga até que, após muito esquadrinhar, agarrou Carlos por um braço e puxou-o para junto do muro, longe da auréola da luminosidade, certamente para se sentir mais à vontade.

– Então não é que ela anda metida com o contabilista da firma onde o homem trabalha…– segredou com os olhos esbugalhados, como se fosse um peixe pronto a ser grelhado na brasa. – Ela andou a gozar-nos!
– Andou a gozar-nos não; a mim ela não me gozou. – Emendou o Mendonça com um ar distante e altaneiro, todo feito de hipocrisia, enquanto sentia a dor a trespassar-lhe o lado mais afectivo da alma.
– Gozou-te e não foi pouco, então não te gozou?
– Eu nunca fui para a cama com ela! – Exclamou Carlos de modo assertivo, admirado com a satisfação que sentia por se ter tornado mentiroso. – A discussão que tivemos em minha casa em frente dela começou por insinuações desse género; acaba com essas tontices de uma vez para sempre! – Reiterou Carlos inundado por um complexo de culpa pervertido em curiosidade que o levou a perguntar com aparente desinteresse. – Mas ao cabo e ao resto, o que é que descobriste?
– Paguei a alguém que fez um trabalho sujo, mas limpo. Até fotografias vou ter para ver hardcore com artistas conhecidos.
– Não acredito! Tu não és capaz de uma patifaria dessas! – Exclamou Carlos, também ele preso ao desejo anacrónico de ver as fotos.
– Infelizmente é verdade! Tu usas dizer que o ciúme só fica saciado depois de se satisfazer com a mais deplorável das provas e eu não tive outro remédio: matar o ciúme pela raiz.
– E o que é que isso adiantou?
– Um desejo louco de a estrangular.

Uns tempos depois apareceram as fotos, mas perante a má qualidade das mesmas, ninguém conseguia afirmar que a mulher fosse Júlia.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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