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(Conto)
Desceu a azinhaga, como em outras ocasiões em que a procurou, mas desta feita não ia nem acirrado nem esmorecido, apenas meditativo. Aliás, naquele fim de tarde, soturno e carregado de nuvens, havia no ar uma melancolia armadilhada, uma paz que atemorizava e seduzia. Num passo pachorrento, virou a esquina junto ao poste da luz que acabara de se acender e olhou a encosta recortada por serventias e pontilhada de casario mas, em vez de dar com a casa de Júlia, deu com o Artur Ferreira, que surgiu cabisbaixo e ensimesmado. Há mais de quinze dias que não se viam. Tudo começara naquela desconversa a três, durante o jantar. Pararam em frente um do outro sem soltar um fiozinho de voz a pensar mal do acaso que os entalou entre tão despropositados varais. O Artur Ferreira estava pálido e exibia uma expressão esfomeada de prazer, o que contrariava a sua maneira de estar. A estranheza física e psicológica interpôs-se entre os dois, até que Mendonça quebrou a inércia e perguntou sem a noção do ridículo:
– Tu por aqui?
– Eu piso os meus terrenos – respondeu Artur com uma voz presa por um mal-estar amarrado ao peito.
– Estás doente? – Insistiu Carlos Mendonça, dando a mão à bonomia da suposição.
– Por que perguntas isso? – Questionou Artur surpreendido.
– Acho-te abatido. – Retorquiu Carlos com uma dose de sarcasmo, que arrepiou a probidade.
– E não é para andar? Depois do que se passou e do que se passa.
– Do que se passou sei eu, do que se passa não sei! Estive fora durante duas semanas e não sou adivinho. Melhor dizendo, sei que a Júlia nunca mais foi trabalhar desde que tivemos aquele desaguisado durante a hora de jantar. Ciúmes patetas entre dois velhos amigos. O pior é que me fui embora e, de volta, vejo tudo tal como deixei ficar. Preciso de um esclarecimento. Não queres lá ir a casa dela, comigo?
– Tu não reconheces a vergonha, pobre Carlos. Ainda bem que a vida te proporcionou ser corno ainda novo. Criaste resistências. Sabes o que costumo fazer para minimizar a dor?
– Não! Não sei! – Acrescentou Carlos Mendonça ignorando as palavras ofensivas do amigo.
– Penso no sofrimento que deves ter tido quando a tua mulher se pisgou, e assim fico melhor. Quem havia de dizer que a Julita fazia jeitos pelas esquinas; uma sonsa de aparência!
O Noronha era um homem perturbado. Olhou as pedras da calçada, como se tivesse deixado cair alguma coisa, depois elevou os olhos para a luz do candeeiro, onde se divisava uma poalha de mosquitos, a seguir perscrutou a escuridão de um lado e do outro da azinhaga até que, após muito esquadrinhar, agarrou Carlos por um braço e puxou-o para junto do muro, longe da auréola da luminosidade, certamente para se sentir mais à vontade.
– Então não é que ela anda metida com o contabilista da firma onde o homem trabalha…– segredou com os olhos esbugalhados, como se fosse um peixe pronto a ser grelhado na brasa. – Ela andou a gozar-nos!
– Andou a gozar-nos não; a mim ela não me gozou. – Emendou o Mendonça com um ar distante e altaneiro, todo feito de hipocrisia, enquanto sentia a dor a trespassar-lhe o lado mais afectivo da alma.
– Gozou-te e não foi pouco, então não te gozou?
– Eu nunca fui para a cama com ela! – Exclamou Carlos de modo assertivo, admirado com a satisfação que sentia por se ter tornado mentiroso. – A discussão que tivemos em minha casa em frente dela começou por insinuações desse género; acaba com essas tontices de uma vez para sempre! – Reiterou Carlos inundado por um complexo de culpa pervertido em curiosidade que o levou a perguntar com aparente desinteresse. – Mas ao cabo e ao resto, o que é que descobriste?
– Paguei a alguém que fez um trabalho sujo, mas limpo. Até fotografias vou ter para ver hardcore com artistas conhecidos.
– Não acredito! Tu não és capaz de uma patifaria dessas! – Exclamou Carlos, também ele preso ao desejo anacrónico de ver as fotos.
– Infelizmente é verdade! Tu usas dizer que o ciúme só fica saciado depois de se satisfazer com a mais deplorável das provas e eu não tive outro remédio: matar o ciúme pela raiz.
– E o que é que isso adiantou?
– Um desejo louco de a estrangular.
Uns tempos depois apareceram as fotos, mas perante a má qualidade das mesmas, ninguém conseguia afirmar que a mulher fosse Júlia.