Padre Beto 24 de janeiro de 2011

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Depois de uma aula sobre o livro sagrado dos judeus, o Tora, o rabino Hillel despediu-se da classe e deixou a escola da sinagoga. Alguns alunos o alcançaram para perguntar para onde ele iria. A vida de Hillel tornara-se um assunto para os jovens da sinagoga, pois seus ensinamentos eram pura sabedoria e o rabino possuía grande admiração entre os judeus. “Eu estou a caminho para fazer uma prática de grande religiosidade!”, respondeu o mestre aos curiosos jovens. Os alunos ficaram imediatamente interessados em saber qual seria esta prática que expressava a fé do velho rabino e perguntaram logo em seguida: “Qual, mestre? Que prática religiosa é esta?” O rabino, com um sério sorriso, respondeu: “Ora… estou indo para o banho!” “Para o banho?”, perguntaram os alunos em uma só voz, “O que tem isso a ver com Deus?”

Em praticamente todas as grandes religiões, o caminho de encontro com Deus constitui-se obrigatoriamente em um encontro consigo mesmo, em um processo de autoconhecimento. No budismo e no hinduísmo, a mandala, por exemplo, simboliza o caminho que deve nos levar ao nosso centro, ao interior de nosso ser, à verdadeira consciência do que somos. Somente através desta experiência de descoberta de nossa essência atingimos a iluminação. No livro sagrado dos hindus Bhagavad Gita, Krishna esclarece a Arjuna: “Todos os caminhos levam a mim. Eu sou o eu no coração de cada criatura, bem como o início, o meio e o fim de sua existência”. O encontro com Deus acontece quando mergulhamos em nosso próprio ser. A experiência de Deus não se constitui em um acúmulo de informações sobre cultura religiosa ou na utilização de algum objeto mágico, mas sim na viagem para o nosso próprio interior. Neste está o canal de sintonia com o Ser que deu origem à vida.

No cristianismo, deixamos de simplesmente existir e passamos a viver como filhos de Deus a partir do momento que atingimos a consciência de nossa dignidade através de Jesus Cristo. O Cristo torna-se para nós um caminho de descoberta de nosso ser, pois encontramos Nele um verdadeiro espelho. O verbo se fez carne para nos mostrar quem na verdade somos e como podemos ter vida e vida em abundância. Desta forma, ler os Evangelhos torna-se um caminho para nosso interior, a partir do momento que compreendemos que somos capazes de caminhar sobre as águas (sobre as incertezas da vida), somos capazes de multiplicar os pães construindo uma sociedade mais justa e fraterna, podemos ir além de nossos pré-conceitos, de nossos padrões morais e sociais vendo no outro o nosso semelhante e, por fim, compreendendo o nosso futuro: um dia teremos a vida em plenitude, a ressurreição. O problema no cristianismo é que durante o transcorrer de nossa história colocamos o espelho, Jesus Cristo, em um altar, o adoramos e esperamos que ele faça milagres em nossa vida. Ao invés de olharmos para o espelho e vermos o nosso próprio rosto, ficamos esperando algo mágico do objeto espelho, sendo que o grande milagre está dentro de nós mesmos. O Cristo é um espelho para que possamos nos reconhecer e não um objeto que deve gerar dependência.

Para Santo Agostinho, fé e autoconhecimento estão intimamente ligados. A fé existe para conhecermos e o conhecimento alimenta a fé (crede ut intelligas; intellige ut credas). Na busca da vida espiritual, Agostinho estabelece como necessária a fusão do conhecimento com o caminho de autodescoberta. “Não vá para fora, mas volta para si mesmo”, escreve Agostinho. No interior do ser humano está a verdade (noli foras ire, in te ipsum redi; in interiore homine habitat veritas). Assim, a vida espiritual possui uma clara trajetória: do caminho exterior (foris) para o caminho interior (intus) e deste para o íntimo caminho do coração (intimum cordis), para Deus como origem de toda a verdade. No conhecimento de todo o meu ser, corpo, vitalidade e personalidade, encontramos a criatividade que gera a vida, Deus que habita em cada um de nós. Encontrar-se com Deus significa encontra-se com nossa humanidade, que não é perfeita, mas na perda do medo e no fluir da criatividade caminha para a perfeição. No encontro com nossa natureza descobrimos que a existência é passageira. Somente quem não se conhece, quem está desligado da humanidade, pensa ter raízes e sente-se em casa neste mundo. Qualquer um que se sinta realmente humano sabe que a vida não se reduz à existência. Esta é uma passagem, uma jornada, mas nunca um objetivo. Ao se autoconhecer, o ser humano descobre que não tem um lar neste mundo. A partir daqui a busca começa e ele se torna verdadeiramente religioso! “Você é uma criação maravilhosa, você sabe mais do que pensa saber e, da mesma forma, sabe menos do que quer saber” (Oscar Wilde).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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