professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

Tão pouco percebido passou que só no ano seguinte encontramos tempo para falar dele. Falo de mim, mas falo da mídia também. O fato é que se o centenário de Noel Rosa foi pouco comemorado proporcionalmente à sua grandeza como compositor, o de Adoniran Barbosa o foi menos ainda. E, no entanto, poucos cantaram a alma brasileira como este paulista de Valinhos.

Enquanto Noel é o próprio Rio de Janeiro em pessoa, Adoniran cantou o interior do país, a gente simples e humilde do interior do estado de São Paulo e de sua capital, com seus problemas, suas dores e alegrias. Típico paulistano, filho de imigrantes italianos, Adoniran experimentou na carne a luta pela sobrevivência do paulistano comum numa metrópole sufocante como é São Paulo, onde tudo, o tempo e a vida inclusive, corre, range e solta fumaça pelas ventas, poluindo o céu e apagando as estrelas, como diria o baiano Caetano.

O verdadeiro nome de Adoniran Barbosa era João Rubinato. Mas, devido ao proverbial amor com que ele canta mesmo as tragédias e os sofrimentos, ia mudando de nome e de personalidade em cada situação vivida, tornando-se personagem de uma nova história. O dia a dia do cidadão comum é corrente e a matéria-prima com a qual Adoniran Barbosa constrói seu cancioneiro. Notícias de jornal, observação da gente da rua, daí sai a lira do compositor, que tem criações imortalizadas na música popular brasileira.

Quem já não sorriu entre encantado e triste com a história melancólica de Iracema, amada pelo cantor, que um dia “atravessou na contramão”, vivendo hoje lá no céu, bem pertinho de Nosso Senhor? Mas em meio ao que é notícia de obituário de jornal – Adoniran se inspirou para compor Iracema em uma notícia sobre uma mulher atropelada na Avenida São João – ocorrência triste e cinzenta do cotidiano mais triste e nublado do paulistano, está o humor do amante inconsolável, que guarda da amada a meia e o sapato, pois perdeu o seu retrato.

Como todo bom poeta, Adoniran foi também um criador de linguagem. O mergulho que fará na linguagem com suas construções e inovações linguísticas, pontuadas pela escolha exata do ritmo da fala popular e coloquial paulistana, na verdade vão no sentido inverso daquele que toma o samba em sua história oficial. Enquanto os outros compositores buscavam tom sublime e solene para suas composições, Adoniran nunca se afastou do jeito popular de ser e de falar, construindo uma linguagem própria e original.

Falando com o jeito popular, que dá às palavras a forma com que as pronuncia, diferente da oficial, mas com o sabor do entendimento oral, o compositor, cujo centenário agora celebramos, introduziu definitivamente na língua portuguesa a expressão “ tiro ao Álvaro” para cantar o tiro ao alvo que era o seu coração em direção ao qual a amada teimava em enviar flechas e mais flechas até não ter mais onde furar. Quem que já tenha amado na vida não se sentiu assim algum dia? “E quem já não ouviu algum brasileiro confundir “alvo” e” Álvaro”? Ou ”tábua” e” talba”?

Não só expressões idiomáticas próprias saem da criação de Adoniran. Também nomes próprios são rebatizados com a liberdade que o talento confere à arte. É assim que o personagem Ernesto que mora no Brás e que deu uma festa onde não havia ninguém e rebatizado de Arnesto, e todos os que cantam o samba de Adoniran nem pensam em cantar de outra maneira senão Arnesto.

Mas a peça-chave, o ícone definitivo de seu cancioneiro é, sem dúvida, o famoso “Trem das onze”, onde o desejo de ficar ao lado da namorada tem que ser deixado de lado para tomar o último trem, não só para não ter que ficar esperando até “amanhã de manhã” como para não preocupar a mãe, que não dorme enquanto o rapaz não chegar.

Com várias interpretações, de Elis Regina a Clara Nunes e até Chico Buarque, entre outros, Adoniran viveu e morreu modesto como nasceu. Amando a vida e acreditando na amizade, contando histórias com sua voz rouca, enchendo de humor e de realidade a vida dos botecos, foi o único sambista paulista que todo o Brasil reconheceu e reverenciou, inclusive o Rio de Janeiro e a Bahia, que são considerados um pouco o território do samba por excelência.

Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/

Copyright 2010 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

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