A defesa da propriedade, ou melhor dizendo, a heróica defesa da propriedade, foi a cena mais marcante de minha passagem pela praia do Saco, no final de dezembro do ano findo. A personagem central foi um garboso e azulado beija-flor, que, ante um vaso, contendo açúcar misturado a água, – desses que se vende em qualquer supermercado, – foi colocado na varanda, justamente para sua serventia. O primeiro beija-flor, que passou, viu e se apossou, ficando empoleirado no fio que o prendia ao telhado da varanda da casa. Sugava a água por um dos orifícios do vaso e depois subia ao trono, onde, elegantemente, erguia a cabeça para um lado e para outro, como um rei, na defesa de sua propriedade.
Foi deliciosa a cena que presenciei durante toda a manhã e tarde, deitado numa rede, bem perto do beija-flor, em dois dias. O vaso, cheio de água, e o beija-flor, lá em cima, vigilante e atento, a atacar os demais beija-flores que também se sentiam atraídos pelo vaso, ou, já sabendo que o vaso continha um líquido que só beija-flor, com seu bico longo e fino, podia tomá-lo, procuravam tirar proveito.
Na luta do beija-flor, que se apoderou do vaso, rememorei a do homem pela propriedade, dentro do um princípio, talvez herdado do direito natural, a garantir [a propriedade] a quem primeiro visse e tomasse conta das terras, com ânimo definitivo. Foi o que o beija-flor fez por dois dias, até o que o sol começou a se recolher e a escuridão a tomar conta do final da tarde.
Luta danada de bonita na defesa daquele pequeno espaço que o beija-flor considerava ser seu. Passou quase o dia inteiro no poleiro – dobra do fio de energia elétrica no tronco de madeira do telhado, – de atalaia para não permitir a chegada de outros beija-flores irmãos, ali considerados como intrusos e invasores. E lá vem a luta pela manutenção do homem na posse de suas terras, ante a invasão de povos estranhos e/ou vizinhos, as etapas da humanidade sendo revividas agora pela pequena ave a minha frente.
De máquina em punho, em alguns instantes, captei o beija-flor bem posudo, os olhos tão miúdos que quase passam despercebidos. Só não consegui captar, inclusive para não perder a beleza da cena, foi a luta do beija-flor, em diversas cenas, para espantar os demais que se atreviam a se aproximar do vaso em busca da água nele contida, ante a rapidez com que se duelam no ar, verdadeiros aviões potentes na perseguição traduzida em vôos cinematográficos.
Às vezes, eram três beija-flores simultaneamente, e o nosso pequenino herói a atacá-los, em vôos rasantes e super rápidos, conseguindo a proeza de espantar todos os bárbaros invasores. Em alguns momentos, no retorno da perseguição que empreendia, ficava próximo ao vaso, a uma distância de uns quinze metros, em lugar estratégico, num coqueiro, a vigiar o seu bem, a espera de uma tentativa de invasão para, rápido como um raio, surgir do nada na tentativa, sempre marcada pelo êxito, de banir, para longe, embora por poucos minutos, o beija-flor que se atrevia a enfiar o bico no orifício do vaso e experimentar da água, que o meu pequeno herói considerava ser de sua exclusiva propriedade.
De toda a luta restou a água no vaso, que foi jogada fora, para, no dia seguinte, ser substituída, senão poderia envenenar o primeiro beija-flor que aparecesse para repetir as cenas de posse, e, para minha gabolice ser maior, diversas e diversas fotografias do beija-flor, entre as quais, uma, em pleno ar, de asas abertas, parecendo um deus inca, que, cá para nós, honra ainda mais a minha decantada condição de fotógrafo amador.
Publicado no Correio de Sergipe
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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