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COMO VIVER A FÉ SEM CRISTANDADE

Jesus morreu sozinho na cruz e cercado não por amigos e sim por inimigos. Quando se pensa nisso se compreende melhor que, para se viver a fé cristã é necessário assumir a solidão e o fato do mundo e às vezes até as próprias Igrejas não colaborarem com o testemunho da fé.

Em nossa sociedade, há sinais que a cultura religiosa de antes foi superada, mas há indícios que apontam para uma forte retomada do elemento religioso, tanto como uma espiritualidade independente de qualquer religião, como em formas de religiosidade popular, seja cristã, islâmica ou budista. Em todo o mundo, crescem formas novas de espiritualismos, mas também aumenta o número de peregrinos católicos em Compostela, Lourdes e Fátima. É um fenômeno social complexo. Entretanto, mesmo se a sociedade ocidental ainda conserva costumes ligados à Igreja Católica, a referencia cultural é outra. As pessoas não dependem mais das posições dogmáticas e morais do clero. Não vivemos mais em uma situação de Cristandade. Há quase 50 anos, durante o Concílio Vaticano II, Paul Ricoeur afirmava: “A Cristandade morreu. Viva o Evangelho”.

De acordo com a maioria dos estudiosos, a Cristandade é o regime no qual uma sociedade baseia sua organização política e social na religião, servindo-se dos aspectos exteriores da instituição religiosa para se perpetuar, mas sem se deixar questionar pela fé e nem mudar suas estruturas autoritárias, desiguais e injustas. Há pouco tempo, no Brasil, o padre José Comblin, um dos mais importantes teólogos católicos do mundo, foi interpelado por alguém que dizia: “em vinte séculos de existência, o Cristianismo não conseguiu transformar esta sociedade”. Da altura dos seus mais de 80 anos, o padre Comblin respondeu: “Até hoje, o Cristianismo nunca foi verdadeiramente vivido, a não ser por poucas pessoas e grupos marginais. A sociedade nunca foi verdadeiramente cristã”.

Quem ler o evangelho com atenção perceberá que mais importante do que ser ou não ser cristão é se tornar crístico, ou seja, pessoa transformada pela presença do Cristo no mais íntimo de sua vida. O apóstolo Paulo chegou a dizer: “Já não sou eu que vivo. É o Cristo que vive em mim”. Esta presença do Espírito de Deus em Jesus se realizou também em outras pessoas espirituais, inclusive de outras religiões. A própria hierarquia católica reconheceu esta inspiração divina em pessoas como o hindu Mohamas Gandhi, a quem os hindus chamavam de Mahatma, isto é “grande alma”. Na América Latina, muitos homens e mulheres, inclusive alguns que não eram membros da Igreja, deram a vida pelo projeto divino da paz e da justiça.

Certamente, foi com esta intuição que, em uma prisão nazista, o pastor Dietrich Bonhoeffer convidava as pessoas a viver a fé para além da religião: “Devemos viver com Deus, como se Deus não existisse”. Na realidade atual do mundo, nós, cristãos e todas as pessoas que buscam uma espiritualidade profunda, somos chamados a ensaiar um estilo de vida que dê sentido a nossos sonhos e acolha nossas buscas mais profundas. Viver a busca da intimidade divina através de Jesus nos leva a uma profunda mudança de nossas perspectivas humanas e de fé. Jesus se revelou como ser humano que só existe para o outro. Ele revela que o caminho para Deus passa pelo humano. No encerramento do Concilio Vaticano II, citando um antigo pai da Igreja, o papa Paulo VI afirmou: “Para encontrar a Deus, é necessário encontrar o ser humano”. Se é assim, nossa relação com Deus não se dá mais, em primeiro lugar, através de expressões religiosas externas. Estas podem ser válidas e úteis, se podem nos conduzir a relações sociais e humanas realmente mais amorosas e solidárias. Para encontrar a Deus, precisamos viver o humano em todas as suas dimensões, inclusive na missão de cuidar com amor da natureza.

(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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