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Céu branco. Frio. Cinzenta vida.
Fim de ano.
Um marco, um compromisso com a idéia de recomeço, de renovação, de esperança.
Esta, tão forte, que vem de cinza este ano. Vem do frio, em pleno dezembro tropical. É esperança temporã…
O vento espalhou pêssegos e mangas pelo chão ontem à noite. Acordamos recolhendo os “presentes” e planejando as homenagens ao novo período, que será de espera, certamente, o que é, por si só, prova de que estamos vivos, de sermos crédulos, de ainda termos amor.
Ou será que, ao contrário disso, essa quietude vem justamente daí, de sabermos, enfim e de uma vez por todas, que o forro da vida é mesmo cinza, o fundo de tudo é em verdade frio e úmido e que precisamos, pois, receber a luz, o calor e a alegria como alegorias, como adornos e adereços, que nossa fantasia empresta ao cotidiano?
O pernil foi assado com capricho. É preciso “fuçar” para frente – abrir com as fuças, como os porcos, o caminho do sucesso, no ano que começa; e o perfume da carne dourada assegura o clima de festa e prepara a gulosa ansiedade.
O ritual das rabanadas: pão cortado, encharcado, lambuzado, frito, polvilhado, empresta da canela o toque de oriental mistério. Da o tom de especiaria ao pão-nosso-de-cada-dia e adoça e conforta, quase como papa de criança, como comida correta e boa.
Esse ano teremos pastéis – saídos da gula, virão trazer o quê de fuleirice e vulgaridade que um ano, que nasce combatendo a fome popular, precisa ter. Pastéis que são pretexto para, no demorado preparo, provocar lembranças, estimular colaborações, promoter gatunices, implicâncias, controles, mas que terminarão, certamente, na murchice do dia seguinte, completando o café esticado do primeiro dia do ano.
A casa foi cuidadosamente arrumada, como podia ser, é claro, e garante agora mais conforto, mas resguarda certa desproteção, que é sua marca e que a faz única e especial: continua casa de pobre, apesar do bar na sala e do armário ex-duplex. Aliás, tudo nela é ex e isso a faz mais sábia, mais vivida, mais acolhedora. Tem aspectos de mãe-de-leite, tem aparência de choupana e é, no duro mesmo, A CASA, O LAR.
Será diferente amanhã, quando acordaremos com o desejo de tirar o papel da “folhinha”, estrear agenda, encontrar no trabalho as novidades já tardias, tão esperadas vêm sendo!
Hoje é ainda o passado; com tudo de bom e ruim, já foi vivido.
Enquanto se espera que o champagne gele na casa do vizinho, aqui, no fundo de nós mesmos, existe uma arrumação natural, onde está sendo separado o que conservar, do que abrir mão.
Sem esforço, vêm à memória cenas e vozes de outros “reveillons”: chovia, quatro anos atrás, quando chegamos aqui, qual pioneiros, tentando arrumar, de improviso, uma ceia “a gaúcha”. Chovia e havia os barulhos da noite (que ainda hoje nos assustam) e os gritos dos animais desconhecidos e o bêbado que falava alto, lá na porteira e, pra nós, era mais que um tolo comum, era um forasteiro, já que, recém-chegados, já nos sentíamos os donos da terra – de coração inteiro, aberto pra essa experiência.
Fora um ano de muitas perdas e, por isso talvez, estávamos tão cansados, mas tão fortes e destemidos.
Depois os daqui nos ensinaram a recolher, nas folhas de louro, as promessas de vitória e nós repetimos pra eles, e repetimos com eles, nossas velhas, já desgastadas superstições e passamos a brindar juntos, a desejar, unidos a eles, a paz, a saúde, o amor, a fartura.
Há quem diga que hoje é o dia de se estar à beira-mar. Parece lógico e até bom, mas nem sempre possível.
Aqui estamos em terra firme, mas longe das águas que correm e levam e lavam, daí, talvez, o conforto que a chuva traz: lavou, desde ontem, canto por canto, cada pedacinho do chão, do ar, de nossas almas. Lavadas, esfregadas e postas no varal, a pingar, limpas e à espera do sol, estão nossas vivências. Descansadas, também, que o frio incentivou o encolhimento sob a coberta de lã, fofa como carneiro, que o carinho imaginou, emendou, montou e agasalha agora, protege, dá cobertura, garante o limite ao corpo cansado; refaz, reconstrói!
Esse foi um ano de muita solidão. No bom e no mau sentido, cada um curtiu sua parcela de si mesmo, cara a cara com seus desejos e desafios. Muita dor: de solidariedade, de ódio, de desencanto. Muita revolta, muito medo. Um ano que começou sobre um fio fino e balançante e que daí mesmo é que nos forçou a buscar unidade, harmonia. Ano que fez rever falsas vaidades e pôr abaixo a mentira do sou boa, sou forte, sou poderosa!
Ano de olhar no espelho e ver uma cara cansada. De procurar abrigo no sono e acordar exausta, fugindo de tanto sonho!
Ano de oração. Orar pra filho que vai, pra filho que vem, pra saúde, pra emprego, pra paciência, pra força. Ora pra manter em ordem o pensamento. Pra não perder a organização do desejo e passar a, perversamente, buscar satisfação em cada instante.
Exercício de espera – exercício de construir a possibilidade do prazer. Santa Eugênia teve o lugar de padroeira do sossego e ter, enfim, um nome a dar à proteção imobiliária invisível, de que me acusam (e eu assumo), foi bom. Ano afastado de muitas magias. Os astros disseram o inevitável e nada conseguiu de fato evita-lo. Inútil profecia.
Daqui a pouco haverá barulho em casa.
Agora, reencontro, no silêncio da tarde, a íntima relação do escrever, que neguei o ano inteiro. Palavras serviram só para mensagens de ódio ardente; só no Natal encontraram a doçura de uma nostalgia que realimenta.
Daqui a pouco os vizinhos virão buscar nossa alegria. E a teremos. O encontro amoroso com sua ingenuidade, trará, certamente, os risos e as efusivas manifestações de afeto.
Por ora, estamos recolhidos, cada um em si mesmo, cumprindo, de modo próprio, o passar das horas, o esgotar do prazo.
Será um novo ano, quando partirmos amanhã e é esse tempo novo que abrirá a porta de outra casa, a nos receber na vida de todo dia.
Poremos os relógios no pulso, marcaremos no despertador as obrigações e preencheremos o tempo intermediário com algum zelo, algum mau-humor (quem sabe?), mais música e (tomara!) menos comida.
Agora é cinza e 93 pede sossego, já que se cansou à exaustão, prematuramente. 93 pede alta e diz que foi embora antes; que aguardemos, por favor, no limbo, até que o ano novo chegue.
Por enquanto é uma ausência no tempo. Um sem tempo pra que seja possível ver brotar algo novo. Do silêncio. Do cinza.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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