teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ

Esse Natal será amargo para muitas mulheres nos morros cariocas. Mulheres que perderam seus maridos ou seus filhos, de um jeito ou de outro, na luta do tráfico que recentemente banhou de sangue redutos específicos do narcotráfico da cidade. Entre elas, destaca-se um grupo: o das moças ainda muito jovens que tiveram filhos com membros do tráfico e agora se veem sozinhas para criá-los.

Os traficantes que fugiram do Complexo do Alemão, por exemplo, deixaram para trás famílias despedaçadas. São mães adolescentes com filhos para criar. Envolveram-se com eles por amor ou por deslumbramento com o que o dinheiro podia comprar. “Ele usava tênis de marca”, diz uma.

Juntamente com o tênis de marca estava o fuzil, a arma, a droga, a violência. E a brutalidade sem trégua, principal trama do tecido cotidiano. “Chegava em casa armado, drogado, não sabia o que tava falando, só queria saber de usar droga. Não queria saber o que estava se passando na minha cabeça; só sabia agredir”, relata outra.

E quando a violência explodia, a única saída era ficar bem quieta. “A gente não podia fazer nada, porque apanhava a família toda.” Potenciada pela droga, a agressividade transformava a casa e a vida em verdadeiro inferno. Ali, no meio deste inferno, essas quase meninas, meio mulheres, levaram para frente, na mais profunda solidão e sofrimento, a gravidez e o nascimento dos filhos.

Algumas tinham família, chegavam a pedir apoio. Mas na maior parte das vezes a família, por medo ou por raiva, desistia de lutar pela menina e pelo filho do traficante que ela trazia no ventre. “Isso é bem-feito; você quis se envolver com ele, o problema é seu.” Expulsa de casa, ela ia viver no inferno do tráfico, partilhando a insegurança e a ameaça constante contra sua vida e a de seu filho.

Em alguns casos, elas contam que o relacionamento no começo foi bom. Ele dizia que queria sair daquela vida, fazia promessas… mas o dinheiro começava a entrar. E o rapaz via que podia ter todas as mulheres que quisesse com a sedução do dinheiro do tráfico. E muitas, desconsoladas, contam: “A barriga foi crescendo, aí ele foi se afastando”, lembra. “Eles nunca são presentes. Eles nunca podem ir numa coisa de pré-natal, assistir contigo. Eles não podem ir lá ver você ganhar neném”.

Sem saída, elas começaram a criar os filhos de pais traficantes que já não estavam presentes durante a gravidez. Com enorme dificuldade sustentavam os filhos que os pais traficantes na maioria das vezes se recusavam a sustentar, apesar do dinheiro que faturavam com o tráfico. “Dinheiro entrava, e muito. Mas ele pensava mais nele e nas coisas que tinha que comprar pra dentro da casa. Coisa de criança ele não comprava nada, não.”

A maioria delas é vitima de uma cultura machista, onde a mulher é vista como objeto e totalmente desvalorizada. Considerada propriedade do homem que quando quer a tem, mas ao mesmo tempo tem outras tantas na rua. Elas entraram na relação com eles sabendo que estavam no tráfico, convivendo com o namorado armado por toda parte. De tal maneira a cultura da violência havia entrado nelas que não questionavam esse estado de coisas. Eram cenas que presenciavam desde crianças elas mesmas. “Desde pequena já vivia com aquilo. Andava na rua, via, então isso não me assustava.”

Com a ocupação da comunidade pelo Estado, existe a esperança de que se possa reconstruir a ordem e a paz ali onde antes o império do tráfico era a lei. Mas para essas mães quase meninas a ausência irremediável do companheiro pesa mais do que tudo. Mesmo sendo ausente, era uma presença, era o pai de seu filho. Agora estão totalmente sem ninguém. E com a responsabilidade de criar os filhos. Sentem-se sozinhas, desamparadas. Muitas recorrem às famílias e não são recebidas.

Algumas, ajudadas por um projeto social “Meninas mães”, sentem-se mais fortalecidas e conscientes. Pretendem criar bem os filhos, dedicar-se a eles. “Vou cuidar do meu filho direito, vou pensar mais no meu filho que no pai da criança.” Para outras, a solidariedade e a responsabilidade será um duro aprendizado, traumatizadas que ainda estão pelo medo e pelo terror em que sempre viveram.

Neste Natal, enquanto o asfalto, frenético, realiza a corrida aos shoppings, no morro haverá muitas crianças pequenas em situação parecida à de Jesus ao nascer: sem lugar, sem proteção, perseguido, pobre. Que o Estado e a comunidade possam ajudar a que essas crianças e suas mães, também crianças, consigam re-situar-se na sociedade e acreditar no seu valor como pessoas, é a graça que somos convidados a pedir enquanto nos preparamos para celebrar a Noite Santa.

Maria Clara Bingemer é autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/

Copyright 2010 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

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