Maria Inez do Espírito Santo 22 de dezembro de 2010

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           ‘Tá bom. Vamos fazer de conta que o Natal não existe mais.
          Hoje é um dia comum; apenas mais uma sexta-feira, em que se pode sentir, no ar, a energia que magnetiza todas as sextas-feiras: inquietação, emergência, melancolia, cansaço.
          Pra nós serão invisíveis as desconfortáveis luzezinhas multicoloridas e não nos deixaremos comover, nem excitar pelo olhar de nenhum velhinho ou qualquer criança, querendo nos empurrar pra frente ou pra trás. Estamos, hoje, no tempo único: o tempo eterno do agora.
          Construímos, com o passar dos anos, esse reduto de segurança e quase conforto – uma trincheira, talvez, que acolhe nossas feridas, sepultando-nos um pouco, como abrigo de terra molhada; envolve, em nós, a forma original: argila.
          Mas, aliviados, ali, quase adormecidos, corremos o risco de despertar, famintos, se chegarem a nós os cheiros que se misturam no ar: canela, vinhadalhos, frutas secas – um perfume caleidoscópico, que vai presentificando sabores distantes: abacaxi, bacalhau, assados e tortas, uvas, vinhos, castanhas… impregnam a casa toda, que ainda há pouco cheirava só a óleo de peroba e a roupa limpa e engomada.
          Agora as velas se acendem a nosso redor e vão-nos abrindo os olhos, esses, tão cansados, já acostumados a estarem meio fechados, mesmo na vigília.
          Descemos das camas altas, crianças ainda, procurando, encantadas, as surpresa que adivinhamos, devem estar por ali, elas que nos acordaram, cantando baixinho em nossos ouvidos a cantiga de nossos primeiros desejos.
          Que é mesmo que se deve encontrar na noite de Natal?
          Vamos, às tontas, no lusco-fusco de estrelinhas que piscam compassadamente e deixamo-nos guiar, extasiados, até o pé de um pinheiro tão grande, tão alto, que talvez  possa nos levar até o céu, de uma vez por todas… Ou vai ver foi ele que serviu de escada pra deixar descerem lá, das últimas nuvens, todas essas criaturinhas estranhas, que preenchem o Natal: renas, anjos, meninos Jesus, camelos, pastores, ovelhas, um
homem, uma mulher, um galo!
          Ainda estaremos incrédulos, olhando as caixas fechadas dos presentes, quando precisarmos decidir se permitiremos ou não, que o tempo volte a passar e que, enfim, possa ser meia-noite, pra abrirmos os pacotes-surpresa.
          Mas, por agora, o Natal não existe mais.
          Ainda que nos visite nos sonhos – nossos ou dos amigos; ainda que bata a nossa porta, invasor; ainda que possa incomodar na falta que denuncia, parece impossível fazer o caminho de volta.
          Então, não abriremos os presentes, nem deixaremos o carrilhão do velho relógio guiar-nos à procura do mistério do tempo.
          Decidimos, de há muito, fazer de conta que essa emoção não precisa existir mais. Desde então , só festejamos, de tempos em tempo, essa insistente capacidade de ser fantasia.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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