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As gaivotas permaneciam enfileiradas em um gramado de frente para o mar. Todas elas com o bico contra o vento formando uma fileira uniforme. Uma, porém, havia se colocado em posição oposta às outras, ou seja, com o bico a favor do vento. “Você é realmente nojenta!”, disseram as gaivotas para a única companheira que possuía a posição diferente, “Nós todas nos colocamos com nossos bicos para o vento. Somente você faz o contrário.” “E se isso me dá prazer?”, disse a gaivota que se comportava de forma diferente, “a minha maneira de ser atrapalha vocês, por acaso?” “Você destrói a nossa comunidade!”, argumentaram as outras gaivotas que continuavam voltadas contra o vento. A outra, porém, permanecia irredutível à crítica das amigas. Em um determinado momento, aproximou-se um gato por entre os arbustos, olhou as gaivotas, notou que o vento o beneficiava e preparou-se para o pulo de ataque. A gaivota que estava com o bico a favor do vento ao perceber a movimentação do gato, alertou as amigas gritando: “Perigo! É hora de voar!” O bando de gaivotas alçou vôo salvando-se do ataque do felino. “Você é uma nojenta individualista!”, disseram as gaivotas com um certo desdém.

O retrato que possuímos do filósofo Sócrates é o de um homem que andava por Atenas indagando a cada pessoa: “Você sabe o que é isso em que você acredita?” ou “Você sabe o que é isso que você está dizendo?”. “Você diz”, argumentava Sócrates, “que a coragem é importante, mas você sabe o que significa coragem? Você crê que seus amigos são as melhores coisas que possui, mas você sabe o que é a amizade?” Sócrates fazia perguntas sobre as idéias, os valores, as palavras e os fenômenos que as pessoas acreditavam conhecer. O filósofo percebia, na convivência com seus contemporâneos, que todos acreditam conhecer o que é bom (agathón), mas na verdade possuíam uma concepção superficial sobre as coisas da vida. Diante dos fenômenos e atitudes humanas, as pessoas tinham aquilo que Sócrates chamava de “aparência do saber”. A maioria das pessoas possuía um saber aparente que se fosse um pouco questionado pela razão crítica não encontraria sustentação. Faltava às pessoas a verdadeira virtude (aretê): a busca de uma autoconsciência e, através desta, o aprofundamento no conhecimento de sua realidade. “Aquele que se conhece é o único senhor de si próprio” (Pierre de Ronsard). Os contemporâneos de Sócrates ficavam, então, surpresos ao descobrirem que diante da pergunta “o que é?” não possuíam respostas claras ou nunca tinham pensado sobre suas idéias, valores e convicções. O pior acontecia depois que algumas pessoas percebiam sua ignorância: esperavam de Sócrates uma resposta pronta. Mostravam, portanto, uma forte preguiça mental e a falta de satisfação em buscar suas próprias respostas. “A ignorância não fica tão distante da verdade quanto o preconceito” (Denis Diderot).

A superficialidade do conhecimento e a preguiça mental possuem seu alicerce na justificação da maioria. Em outras palavras, a aprovação alheia é parte essencial de nossa capacidade de acreditar que estejamos certos. O nosso modo de pensar e o nosso estilo de vida são considerados errados pelo simples fato de encontrarmos a oposição do grupo de pessoas que nos circunda. Na verdade, o que deveria nos preocupar não é o numero de pessoas que nos contradizem, mas sim se estas possuem ou não boas razões para agir desta forma. Deveríamos, portanto, desviar nossa atenção da presença da impopularidade e nos centrar nas explicações para ela. “Toda verdade inédita começa como heresia e acaba como ortodoxia” (Thomas Huxley).

Normalmente nos deixamos atormentar por uma tendência contrária: dar ouvidos a todos. Assim, nos aborrecemos com cada palavra rude e cada observação sarcástica. Esquecemos de nos fazer a pergunta fundamental e reconfortante: em que bases tal crítica ou censura está sendo feita? Deveríamos nos dar ao trabalho de examinar o que está por trás de uma crítica. Muitas vezes, vivemos circundados por inertes, pessoas que possuem tempo suficiente para criticar as iniciativas e o trabalho de quem está buscando realmente viver. “Depois de algum tempo você aprende que o sol queima se ficar exposto por muito tempo” (W. Shakespeare). Geralmente os inertes permanecem em seus conhecimentos superficiais, em seus preconceitos, possuem uma enorme preguiça mental e são movidos por uma profunda inveja de quem se esforça em enxergar além dos horizontes. De qualquer forma, o valor da crítica irá depender do processo do pensamento de quem a emite e não de quantos a emitem ou da posição social que ocupam. Pensar por si mesmo torna-se fundamental; para isso, um bom começo é a consulta ao “pai dos burros”, um interessante dicionário, como “A Vida Íntima das Palavras” de Deonísio da Silva (Ed. ARX), e, é claro, não esperar encontrar nele respostas prontas, mas sempre um início para reflexões. “Sua vida… Clama a cada um de nós: Seja um homem e não me siga – seja você mesmo! Seja você mesmo!” (Nietzsche).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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