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O filme francês, indicadíssimo para o Oscar, está aí: Entre os Muros da Escola. Não percam.

Fui lá, encontrar-me comigo, educadora.

Assisti in-tensa-mente, sentindo-me muito cansada e saí triste, triste.

De tão bom que é, o filme consegue mostrar muito bem essa Escola que a gente conhece, onde há muito tempo deixou de haver espaço para a Vida.

Em vários momentos, lembrei-me de mim, nos últimos anos da minha Escola Viva e da tentativa quase inútil de traduzir para os professores “importados” para os adolescentes, uma filosofia de Educação, baseada no afeto, continente da complexidade da Vida, que eu mesma inaugurara e que ia se fortalecendo dia a dia, no convívio de crianças, jovens mestres formados naquela prática e pais corajosos o suficiente para aceitarem o desafio de uma proposta “inovadora” de repensar as certezas.

Até que, com o crescimento inevitável da Escola, tudo que construíramos tão cuidadosamente ficou exposto a um contingente de alunos já marcados pela passagem por escolas outras, comprometidas com aquele sistema que eu antevi falido e contra o qual lutei ardentemente.

Porque uma Escola Viva não pode ter fronteiras, íamos absorvendo, também, as crostas reacionárias de uma sociedade medíocre, da qual surgimos e a qual pertencíamos, portanto, ainda que inconformados.

No filme, um professor, quase que isoladamente, tenta encontrar uma forma autêntica e íntegra (às vezes desajeitada, é verdade) de se relacionar com os alunos, adolescentes de uma escola pública, oriundos de culturas distintas, de etnias diversas e quase todos contaminados pelas doenças degenerativas de nosso tempo: apatia, descaso, desencanto, que geram sintomas de ignorância, vulgaridade, violência e mascaram a causa mais grave de todas: intolerância às diferenças.

Não, não se trata de um roteiro simplista, que siga o modelo americano: alunos rebeldes X professor idealista. Como todo filme europeu, a trama é montada com bastante sutileza, sem comprometer a dramaticidade, bom que se ressalte.

Mas o que não deixa de ser mostrado, embora sem alarde, nem usando nenhuma técnica de desvendar abrupto, é a ambigüidade do sistema educacional escolar, que reproduz as dificuldades da vida familiar, não servindo a seu objetivo maior de permitir que se desenvolva a convivência com as diferenças.

O eterno fingir-não-ver aparece claramente na cena em que o Conselho de Classe ignora o comportamento desrespeitoso das alunas representantes de classe e com isso alimenta o estopim que deflagrará o grande conflito da história. E recrudesce na forma com que os professores lavam as mãos, entregando o aluno ao ” seu próprio destino”, como eles dizem, como se não fizéssemos todos parte de uma mesma história e fosse possível portanto setorizar destinos.

Qualquer educador sério sabe identificar quando isso acontece (e como acontece!): “melhor não falar, melhor não interferir, até porque a gente nunca sabe ao certo o que fazer”… E o aluno abandonado à própria sorte (ou azar), como qualquer ser humano que tem medo, sentindo-se desamparado e perdido, torna-se agressivo e transgressor.

Winnicott dizia que a transgressão é sempre um pedido de socorro. Entendida assim, é claro, por quem pode ouvir o grito mudo que pede ajuda, sem ficar mais aterrorizado do que a vítima.

O final do filme me decepcionou, mais uma vez, embora eu ache que, dessa vez, tinha que ser assim mesmo… A frustração não é provocada pelo filme. É a realidade que não me permite esperança.

Aí, lembrei-me de meu velho e sábio Professor Maurício Cardoso de Mello Silva, que, sempre extremamente generoso e atencioso com os alunos, foi vítima um dia de uma violenta reação de uma boa estudante, ao lhe cobrar um dever de casa não cumprido. Indignado com a malcriação descabida da mocinha, Maurício, encolerizado por um momento, expulsou-a de classe. Mas foi um fato tão inédito em sua vida de mestre e de tal maneira o surpreendeu e contrariou sua própria atitude, que, no mesmo dia, Maurício foi visitá-la em sua casa, para se retratar e lhe dar, assim, uma saída honrosa, que lhe permitisse voltar às aulas.

Indignada, eu cobrei ao professor essa condescendência que me pareceu excessiva e ele me exemplou, dizendo: “Eu é que sou o Educador, cabe a mim compreendê-la e dar-lhe a oportunidade de, em uma nova oportunidade, agir de outra maneira.”

Anos mais tarde, diretora da Escola Viva, em Petrópolis, quando, ao abrir o curso secundário (ensino médio de hoje) comecei a receber alunos problema de outras escolas da cidade (até porque em 16 anos, nunca recusamos matrícula a ninguém), vi-me sem ação ao ter que aplicar castigos e sanções, procedimentos até então inimagináveis com meus alunos, criados desde pequenos num ambiente de respeito e transparência, que cultivava valores, para formar seres conscientes e felizes.

Um dia, três jovens alunas novatas, que vinham reincidindo em matar aulas, expondo-se a riscos, ao ficaram na rua fumando maconha, praticamente me obrigaram a, indignada com sua desobediência repetitiva, suspendê-las. Tão chocada fiquei, logo em seguida, ao me dar conta da violência e inocuidade de minha atitude, que resolvi me suspender junto com elas.

Durante a semana em que as moças não puderam assistir aulas, encontrei-as reunidas no horário da Escola, diariamente, alternando os locais de encontro por suas casas, exatamente para bucar entender melhor seus cotidianos e suas dificuldades.

Iniciei, ali, sem intenção premeditada, aquilo que se tornou meu trabalho futuro, como terapeuta: a cura pela palavra, através da reciprocidade. Muita conversa rolou e o autoconhecimento ajudou-as com certeza a aceitar um novo padrão de Escola, que tanto desejavam, quanto temiam.

Seguindo, na época, apenas minha intuição e minha disponibilidade interna, acredito ter agido da melhor forma possível. Construimos laços afetivos profundos, baseados na mutualidade, geradora da confiança que se estabeleceu entre nós, o que, sem dúvida, transformou nossas vidas.

Por conta do que aprendi com essa experiência, dediquei-me, a partir de então, ao estudo da Psicanálise e pude aplicar muito do que fui descobrindo, ao campo da Educação, enriquecendo bastante o trabalho da Escola Viva.

Daí, talvez, ter sentido falta, no filme, de que o professor fosse procurar o aluno ausente, para entregar-lhe seu trabalho de autoretrato, mesmo depois deste ter sido afastado da Escola. Seria, possivelmente, um encontro verdadeiro de dois seres humanos, ambos vítimas de um sistema falido e perverso.

Para mim, há muitos anos, a Escola, como instituição, é algo que já não faz mais sentido. Por entre seus muros, cresce a erva daninha da discriminação, que empobrece, destrói ou, no mínimo, paralisa.

No filme, está mostrada a realidade francesa, mas podia perfeitamente ser a brasileira (tão semelhante!), ou a de qualquer outro lugar do mundo. A denúncia sobre a inutilidade do processo escolar, dito educativo, se faz ouvir quando uma aluna declara, constrangida e sofridamente, que não aprendera nada, durante todo o ano. O professor tenta convencê-la de que está equivocada ao fazer aquela afirmação. Ele não pode acreditar, nem suporta pensar, que tudo o que se passara, ali, fora inútil.

A voz daquela moça é a voz de todos nós, que cotinuamos não aprendendo nada, mesmo após tantos genocídios, tantas guerras, ainda que prestes a ver a destruição total do mundo! Continuamos cúmplices dos criminosos, ao permitir que crianças seja supliciadas pelos próprios pais, continuamos a pular por cima dos mendigos e a fechar as cortinas para nos isolarmos da miséria.

Apesar de tudo que sabemos da longa História da Humanidade , não aprendemos nada!

Portanto não dá para nos enganarmos: esta Escola, esta receita de viver, está Morta. Emparedada entre muros de insensibilidade e acomodação, que nos transforma, a todos, em órfãos desassistidos.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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