De quando em quando, vejo alguém, ardorosamente, criticar a linguagem do Judiciário, reclamando a imperiosa necessidade de alterá-la, para torná-la devidamente clara e compreensível. A campanha se limita ao Judiciário. Não vejo ninguém reclamar dos termos médicos, nem dos seus relatórios: paciente portador disso e daquilo. Os exames, então, nem se falar. Já tentei, em alguns, encontrar os termos no dicionário e não consegui. Os chavões dos economistas, por seu turno, na vazão das receitas, passam despercebidos. Mas, a linguagem do Judiciário, não. É como se fosse o entrave para a nação trafegar no primeiro mundo.

Pois entonce. Já que comecei a conversa, vou adiante. Sou contra, absolutamente contrário, a qualquer alteração na linguagem dos votos e dos acórdãos. Tudo deve continuar como está. E argumento: despojar o Judiciário de sua linguagem pomposa é, também, uma forma, e, aliás, bem direta, de retirar a liturgia que lhemarca os passos. O Judiciário deve continuar solene, juizes com togas, Excelências para um lado e Excelências para outro, os resultados anunciados como sempre se fez e como hoje se repete, ou seja, embargos declaratórios providos, sem emprestar-lhe efeitos infringentes, num exemplo. O Judiciário deve continuar formal, essencialmente formal.

Esta a minha posição, porque não vejo com bons olhos essa história de simplificar a terminologia dos tribunais, para que o vulgo possa saber, sem explicação do técnico, do que, efetivamente, ocorre. Ou seja, saber do resultado do julgado sem a legenda da tradução. O Julgado se volta para os litigantes, mas o resultado é dirigido aos seus procuradores, que são profissionais devidamente habilitados a entender o recado e a rebate-lo. Não há como proceder a qualquer modificação, para levar a linguagem até as ruas, porque esta não é a função do Judiciário. O Judiciário julga. O advogado traduz a sua linguagem para o seu constituinte. Tenho dito.

Contudo, há alguma coisa nas petições das partes (também nos julgados, ressalte-se) que, ao tomar conhecimento, não consigo conter o riso. É quando o nome de algum julgador ou jurista vem antecedido do termo saudoso. Assim: o saudoso min. fulano de tal; o saudoso des. sicrano dos anzóis, etc. e etc. Lopes Meireles, por exemplo. Já li muito trabalho, no sitio de petições, chamando-o de saudoso.

Fico espantado. Primeiro, porque não conheço, ao menos, nenhum retrato de Lopes Meireles. Não sei, tampouco, onde nasceu, com quem casou, os filhos que porventura deixou, onde morava, seus hábitos, nada, enfim. Para mim é apenas um autor, e, aliás, dos melhores, na matéria de Direito Administrativo. Só. Daí tratá-lo, quando tenho de faze-lo, apenas pelo nome, despojado de qualquer outro título. Nem menos o de doutor lhe atribuo. Da mesma forma, com todos os juristas que passaram e que passam pela Corte Máxima. A citação é sempre feita de forma solene, mantendo-se a distância devida. De mim, que o cito. Dele, que é citado.

Entretanto, é comum a invocação do termo saudoso. Fico imaginando que o profissional, que subscreve a peça, tenha sido seu amigo, privado sua intimidade, batido bons papos, tomado cerveja em algum bar, ouvido boas piadas, dado algum conselho depois das turbulências causadas por alguma discussão mais dura com a esposa, para, depois, com o óbito, invocar o termo saudoso, toda vez que o cita. Só assim justifica a saudade. Se um morto ilustre, julgador ou doutrinador, figura como saudoso, é porque, naturalmente, deixou saudade, sentimento bem íntimo. Como julgador, por exemplo, não tenho saudade nenhuma de Pontes de Miranda e de Nelson Hungria, autores de textos dos melhores, por mim já recorridos em diversas ocasiões e sentenças. Saudades deles devem ter sentido os seus familiares.

A tarefa de trasladar para o feito uma intimidade, que nunca existiu, e se existiu, os autos não são o lugar devido para a revelação, me faz lembrar o final de uma informação, de um colega de velhas datas, juiz de direito como eu fui, de comarca do interior, de Sergipe, ao se dirigir ao relator do habeas corpus impetrado, concluir afirmando que aquelas eram as informações que tinha a prestar e que Deus conservasse Vossa Excelência e sua digníssima família, que tanto prezo, com boa saúde. Só não desejou boas festas e feliz ano novo porque não era o momento adequado. É como chamar o jurista de saudoso. A mesma coisa.

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Publicado no Diario de Pernambuco

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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