professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ
Chamada desde sempre com os mais piedosos nomes: “Filha predileta da Igreja”, “Filha mais velha da Igreja”, a ligação da França com o catolicismo é fato histórico e comprovado ao longo de mais de 2000 anos de cristianismo. Dali surgiram grandes pensadores cristãos católicos, filósofos como Jacques Maritain, romancistas como Georges Bernanos, assim como eminentes teólogos, entre os quais Yves Congar e Henri de Lubac são dos mais ilustres.
No entanto, ultimamente a tão católica França, tornada berço da laicidade após a Revolução de 1789, entrou em um acelerado processo de secularização, o que tem lhe valido algumas interpelações e mesmo admoestações por parte das autoridades eclesiásticas. Assim foi em 1996, quando da visita do Papa João
Paulo II a Reims para comemorar o 1500 aniversário do batismo do rei Clóvis e mostrar a identidade cristã do país, por exemplo. Nesta ocasião, o Pontífice lançou aos franceses a direta e cortante pergunta: “França, filha primogênita da Igreja, que fizeste de teu batismo?“
O grito do Papa não era sem fundamento. Segundo um artigo da revista “Monde des religions”, a França é o país europeu que conta com mais ateus e pessoas declaradas “sem religião”, sobretudo jovens, com formação universitária e aderentes a partidos de esquerda. O artigo enfatiza também que os que se declaram “sem religião” não deixam de ter algumas crenças, como a esperança na vida após a morte. Isso não impede que a prática religiosa seja parca na França, assim como em todo o resto da Europa, e que a adesão aos dogmas e à moral católica se encontre francamente esgarçada e tênue.
Parece, no entanto, que o dogma de fé que afirma que o Batismo imprime “caráter” – ou seja, marca indelevelmente aquele que o recebe, não podendo ser administrado à mesma pessoa mais de uma vez na vida, – está se fazendo surpreendentemente visível na laicizada França. Há alguns meses, o filme com maior bilheteria entre os produzidos no país é o belíssimo “Des hommes et des dieux”, de Xavier Beauvois, sobre a comunidade de monges trapistas assassinados em Thibirine, no Magreb, no ano de 1996.
Premiado em Cannes, o filme já alcançou uma bilheteria de três milhões, fato raríssimo no cinema europeu. Em todo o país, é assunto obrigatório de conversa e debate. Os principais periódicos franceses o têm como manchete e matéria de capa. E os jovens lotam as salas de exibição, fascinados pela história profunda e comovente daquela comunidade que há quinze anos, discerniu e decidiu ficar em Thibirine correndo risco de vida para não abandonar o povo do lugar, na sua grande maioria muçulmano, com quem havia feito uma aliança de vida e morte.
Cinematograficamente, estamos diante de uma obra de arte. A direção impecável de Xavier Beauvois conduz o espectador suave e firmemente ao longo da trajetória espiritual daquela comunidade que, em meio a seu cotidiano feito de oração, trabalho manual e vida cenobítica, é chamada a tornar concreta a entrega radical da vida já realizada ao pronunciar os votos religiosos.
A fragilidade de homens que têm medo e querem viver, tentados a ir embora dali e salvar sensatamente suas vidas vai sendo revertida pelo chamado de Deus e do povo argelino. Os frágeis homens então se agigantam, banhados pela luz da inspiração divina e pela paz da adesão à vontade d’Aquele que é o Senhor de suas vidas.
Ao longo de todo o filme, destaca-se a figura do prior – em grande interpretação de Lambert Wilson – que, exercendo seu ministério de Abba-pai daquela comunidade, conversa com cada um, escuta, reza, ouve, sofre. A graça de estado que envolve sua fragilidade humana reforça em cada um de seus irmãos a coragem necessária para o sacrifício e o testemunho definitivos que virão.
Na vida real, esse grande homem, Christian de Chergé, escreveu seu testamento espiritual sentindo a morte que se aproximava e deixou um legado de fé e estatura espiritual ao qual hoje o filme de Xavier Beauvois faz justiça. Alavancado pelo filme, seu diário encontra-se esgotado em várias livrarias francesas.
A laicizada França ainda vibra sob o efeito de seu Batismo. A repercussão do filme sobre os monges de Thibirine, juntamente com outros sintomas, como o grande número de jovens que procuram ao longo de todo o ano o mosteiro ecumênico de Taizé dão testemunho disso.
Homens ou deuses? Homens, certamente, mas que permitem que a graça divina os configure segundo a grandeza do próprio Cristo. Que a memória ardente dessas testemunhas possa converter-nos. E encher nossa vida com um pouco mais de beleza e grandeza, sobretudo nestes tristes tempos em que desfila diuturna e incessantemente diante de nossos olhos o baixíssimo nível dos últimos estertores da campanha eleitoral para o segundo turno.
Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/
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