Djanira Silva 22 de novembro de 2010

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          De manhã, quando acordei, sabia que para ser feliz precisava matá-la. Decidi. Já não podia continuar sofrendo por causa dela. Tinha que tirá-la da minha vida.
          Teria que ser um ato definitivo, sem deixar rastros. Os rastros é que me fazem sofrer entulhando lembranças dia a dia.
          Seis horas, os sinos tocam. Entro na igreja. O pensamento caminha devagar por entre as pessoas, os bancos, os altares. Foi ali que te vi pela primeira vez. E, naquele momento também ela entraria na minha vida.
          Elogiaste o meu vestido. Acariciaste-me os cabelos, levaste-me pela mão. Nas noites de verão os passeios ao redor do rio, as caminhadas pelas pontes cheias de vento e de lua. Nas noites de chuva, os encontros furtivos.
          Nas novenas de maio, no aconchego da capelinha fingíamos ouvir rezas que nem entediamos quando então eu pensava que aquilo tudo nunca terminaria. E realmente não terminou. Porque ela ficou entre nós principalmente depois de haveres partido. Por isto mesmo, preciso matá-la, livrar-me dela, tirá-la da minha vida. Não posso mais esperar. Somente com a sua morte eu serei feliz. Não suporto mais viver atormentada, sem liberdade para olhar o futuro. Preciso matá-la, em todos os dias da minha vida.
          Refiz, mais uma vez, todos os caminhos. Sofri as lembranças impressas nas pedras, na poeira, nas calçadas por onde passamos, escrevendo sofrimentos. Os passeios de barco, o corpo queimando de desejo, o sabor do proibido na permissividade das mãos. A luz clara do sol aumentando o prazer do pecado sem remorso. E ela, em toda parte, presente em tudo.
          Tentei, por muitos meios livrar-me dela. Andei por muitos mundos enterrando lembranças, momentos que se refaziam como pedaços de um quebra cabeça aumentando a dor do nunca mais. Sob a grande árvore, onde abrigados da chuva, nos tornávamos um só, chorei pela última vez.
          Agora, a dor que me consome dá-me a certeza de que ela é a única culpada. Por isto preciso matá-la. Mas tenho medo, medo da sua força, ela não morre tão fácil.
          Quando acordei estava decidida. Precisava matá-la. E teria que ser aos poucos, devagarinho até que nada mais restasse, nada.
          Então, fui à tua procura. E quando nos abraçamos, sem culpa e sem medo, matei, matei de uma vez a saudade.

Obs: Texto retirado do livro da autora – Memórias do Vento

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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