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Minha filha Gabriela, uma excelente atriz, sempre implica comigo dizendo que eu só gosto de “ teatro com móveis no palco”. Exagero dela! Mas não posso negar que valorizo os cenários tradicionais. Há alguma magia especial nesse parecer tão real da cena ilusória. Talvez seja como se, aportada nos objetos reais, eu pudesse mais livremente soltar minha imaginação para entrar na história e ser os muitos outros, a que o teatro nos convida.

Lembrei disso hoje, logo que entrei no teatro do CCBB para assistir “Recordar é Viver”. Ali estava, à minha espera, um cenário que me fazia pensar nas muitas casas que já tive, nas muitas casas que já visitei, nas vidas que já vivi. Enfim, eu estava “em casa” e isso não é pouca coisa, convenhamos. As casas, dizia Carlos Lacerda, são ogivas. Dali se pode partir para o infinito.

Para a aventura de hoje eu escolhera Sergio Britto para meu guia. Encontrei-o logo que as luzes se amorteceram, a espera de ajudar-me a realizar meu desejo de viajar , sentado com um jornal na mão, disposto a ser o pai , naquela história que nos iam contar. E foi pelas mãos daquele pai, amoroso e tolerante, teimoso e quase terno, às vezes delirante, às vezes humilhado, que vivi esse espetáculo, cuja magia consiste em trazer nossas histórias de pessoas comuns condenadas, no enredamento de neuroses que não tem nenhum charme, ao sofrimento contínuo causado por infindáveis mal entendidos dos afetos que se perdem pelo caminho. Este, em verdade, parece ser o destino normal da vida familiar e talvez seja até mais grave, quando o grupo é cumplice no disfarce de modelo de felicidade e virtude.

Ali estão, na trama encenada, seis pessoas que, sem dúvida, se amam profundamente, de alguma forma. Mas que amam, cada um deles, de pelo menos seis maneirasdistintas e com destinos diferentes. E os sentimentos aparecem em cores e intensidades diversas, de acordo com o objeto que perseguem e vão se misturando e se bifurcam e se entrelaçam , retornam e se retorcem, como linhas cruzadas num novelo só, que se faz e desfaz o tempo todo. E não é mesmo assim, que acontece na vida?

A simplicidade magistral da interpretação dos atores, (destaque especialíssimo para Sergio Britto e Sueli Franco), fazem com que estejamos todos na mesma cena, alternando-nos também nos papéis, qual intérpretes passivos. Afinal, ciúmes, invejas, desprezos, carinhos, desejos, ressentimentos, tristezas, medos, covardias, admirações, repulsas, vaidades, indiferença, raiva formam elementos das linguagens estrangeiras que todos conhecemos e que julgamos dominar. No entanto, como bem nos ensinou o velho Freud, recordar só se torna vida de verdade se a recordação, trazendo a repetição, possibilitar a elaboração que transforma. E como isso é difícil!!!!! Tão difícil e tão mobilizante que a platéia (a de hoje, pelo menos), frente à revivência inevitável que a identificação promove, adota uma atitude reativa de rir compulsivamente, como se tudo não passasse de uma grande comédia, o que absolutamente não é.

Aliás, registro aqui meu profundo incômodo com a onda de “gás hilariante” que vem dominando nossas platéias, de modo geral. Vi isso na Flip, sentindo o mesmo desconforto e surpresa que fizeram Ferreira Gullar chegar a comentar, no meio de sua entrevista, o inoportuno das risadas dos ouvintes. Claro que ele fez isso com extrema delicadeza, mas não deixou passar em branco, felizmente.. Sempre fico me interrogando sobre de quê as pessoas acham tanta graça…

Em Recordar é Viver fica óbvio a mobilização incômoda que as emoções revividas ali provocam. O texto vai nos conduzindo de tal forma a situações conhecidas, que é impossível, por exemplo, não reconhecer as imagens (fictícias) dos slides projetados na cena. Todos trazemos dentro de nós aqueles tais sorrisos inocentes de que falam os personagens, aqueles citados embaraços. Então, estamos naquelas fotos, com certeza. Apriosionados, até que a elaboração nos liberte.

Enfim, ver a dignidade e a competência com que Sérgio Britto incorpora o homem velho, para muito além e inteiramente dentro de sua própria experiência, me fez pensar em quantos podemos ser numa mesma vida, mesmo quando aparentemente limitados pelas amarras das relações instituídas num modelo patriarcal, que escraviza homens e mulheres. Reforçou-me a crença de que é da própria energia das histórias que pode vir a força transformadora.

Deixei aquela casa ainda mais certa de que não se pode deixar que o mal dito dos afetos paralise nossas vidas. Lembrando de tudo que tenho aprendido na leitura de nossos mitos indígenas, revi, na cena de Recordar é Viver, a Mulher-aranha, o Comedor de Cobras, a Cabeça Voadora e saí certa de que, como proponho em meu livro “Vasos Sagrados” ainda é o encontro com a Mulher de Barro que nos trará a grande (e tão simples quanto tão antiga), possibilidade de criar continentes afetivos plenos para os seres humano

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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