O preconceito era maior que o meio, impregnado totalmente com o conceito de masculinidade, que fazia parar o tempo, para melhor sorver a idéia do ser homem, na rejeição das novidades que, aos poucos, iam chegando. A solução era cada um ficar no seu canto, calado, esperando a onda passar, para ver o final da novela.

Uma das novidades dos meus tempos de menino foi à chinela apelidada de japonesa. Alguém (quem teria sido, nunca se indagou, nem nunca se soube) considerou que não era recomendado para menino. Julgamento feito, sem direito algum a qualquer recurso. Quem saísse com uma pela rua seria alvo de uma série de piadas, a masculinidade posta no campo da dúvida. Ninguém se atrevia a desafiar a maledicência do meio, à época.

O mesmo se diga com relação à camisa de cor vermelha. Não era rosa, estou certo. Era vermelho. Vaticinou-se que não era coisa de homem. E pronto. Mesmo com o Cantagalo adotando a cor vermelha na camisa, ninguém se trajou de vermelho. Quem se arriscaria à sanha da molecada de plantão, de esquina em esquina, no banco das praças, na porta dos cinemas, nas bancas da feira, a espera de um fato para jogar todo o veneno que o atraso daqueles tempos abria espaço?

O pioneirismo, geralmente, recaia em alguém de fora, que, nas férias, na casa de um algum parente, passeava. A condição de visitante fornecia a distância devida a fim de que ninguém se aproximasse para o rótulo da observação irônica, misto da ignorância de medir a masculinidade dos meninos pela cor da camisa ou pela chinela que colocava nos pés.

Nunca tive uma japonesa na minha infância, nem nos tempos do ginásio, nem coragem teria para enfrentar a ira do numeroso exército que se aproveitaria do fato para a confecção da piada do dia. Custei a adquirir a primeira (e única, até agora) japonesa, que não me agradou. Já a camisa vermelha só fui usá-la depois de certa idade, recordando-me sempre da marcação que se fazia naqueles tempos idos.

Mas, a maior guerra veio com o picolé. Esclareço. Bobó levou a primeira máquina de picolé para Itabaiana, que seja do meu conhecimento, instalando-a no seu bar, cuja marquise trazia o nome que nunca pegou: Bar Simpatia. Final dos anos cinquenta e começo dos anos sessenta, mais ou menos. Novidade extraordinária que outros, depois, foram adotando. A gente ficava um tempão a espera que o picolé estivesse no ponto.

Pois bem. Joãozinho da Padaria, que tinha bar em frente do de Bobó, em uma das esquinas da Rua das Flores, que dava acesso a Praça da Santa Cruz, também adquire uma máquina. Não deu certo. Enquanto o bar de Bobó vendia picolé a três por dois, o de Joãozinho sofria do mal da falta de freguês. A diferença não estava no sabor, nem na escolha das frutas. O problema repousava no formato. Enquanto o picolé de Bobó tinha a forma retangular, o do Joãozinho da Padaria era redondo. Ora, o redondo fez com que se observasse a semelhança com … Não digo, em absoluto, não digo.

Quem ia, de sã consciência, colocar, naquela época, um picolé redondo na boca? Surgisse coragem para alguém se arriscar a tanto. A rejeição atingiu os dois sexos, abarcando os meninos e as meninas, os jovens e as moças, as mulheres e os homens. Ninguém, absolutamente ninguém, se encorajava a entrar no bar de Joãozinho da Padaria para adquirir um picolé. O formato não ajudava. Joãozinho terminou passando adiante sua máquina e, naturalmente, saturado com o insucesso, não comprou outra, nem de picolé retangular ou quadrado, achando melhor não enfrentar também, como a população não ousou, os preconceitos reinantes, daqueles tempos.

Depois, em anos que não gravei, chegou a moda do cabelo grande. Os mais corajosos enfrentaram a multidão de críticos. Alguns seguraram a peteca, na adoção das vastas cabeleireiras. Desta vez os tempos eram outros e os que se intitulavam de corregedores das modas e dos costumes, terminaram perdendo a peleja. Mas, na defesa do cabelo curto, surgiu um intrépido guerreiro: Zeca Araújo, ou seja, Zeca do Crediário, no seu jeito manso, passo miúdo, as mãos para trás, o riso meio escondido, a boca permanentemente fechada. Era passar um cabeludo a frente de sua casa comercial, Zeca lhe pedia um retrato, tamanho 3×4, para sua coleção. E, para surpresa do cabeludo, o golpe fatal, ao mostrar o álbum, com fotos de homossexuais locais, todos de cabelo grande. Evidentemente que a pessoa se encabulava, tomando a disposição de cortar o cabelo, digo, de aparar a vasta cabeleira.

Ninguém, contudo, se incomodava com os preconceitos daqueles tempos, porque, no fundo, a gente também respirava aqueles ares, e, não podia deixar de pensar diferente de todos que nos cercavam. Vou buscar na segunda série B, nos idos de 1963, no então Ginásio Estadual de Itabaiana, um fato bem típico, dentro da matéria. Éramos seis meninos e vinte e seis moças. O sino batia o horário de final de aula, e, dez minutos depois, o do reinício. As meninas formavam fila encostadas a parede. Os meninos, do outro lado. Com ordem da inspetora, as meninas entravam em classe, respeitada a fila indiana. Quando a ordem era dada aos meninos, alguém, entre nós, gritava: quem entrar é veado. Ninguém entrava. O professor vinha até a porta, ordenando a nossa entrada. Todos parados. O que tivera a infeliz iniciativa de gritar, agora anunciava que a brincadeira não valia mais. Mas, desta vez, era o professor que, irritado, não deixava mais os meninos ingressarem na sala de aula. Perdi muita aula por causa dessa brincadeira.

A japonesa ganhou a parada. A camisa vermelha, também. O cabelo grande deixou de ser moda, a não ser entre jogadores argentinos. Mas, toda vez que compro um picolé e me deparo com o formato redondo, me vem à tona o fracasso dos picolés vendidos por Joãozinho da Padaria. E, de repente, aquele preconceito tenta me inibir. Termino, vencendo, mas, um tanto apressado, como se ainda fosse menino e estivesse em Itabaiana.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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