Todos sabemos que o sistema de saúde do Brasil está longe da perfeição. O que explica cerca de 40 milhões de inscritos em planos privados de saúde. Esses privilegiados preferem pagar mensalmente pela atenção médica, convencidos de que, ao dela necessitarem, os cuidados recebidos farão jus ao dinheiro despendido.
Ora, na prática a teoria é outra. Quase nunca o cliente lê as miúdas letrinhas dos contratos e quase sempre se sente lesado ao passar de cliente a paciente. Há sempre um senão… um tipo de exame não incluído, uma certa qualidade de internação não prevista, uma cirurgia a ser paga “por fora” etc. Os Procons estão repletos de queixas desse tipo.
Também sou privilegiado. Pago todo mês mais de um salário mínimo para me manter sob os eventuais cuidados de um dos mais conhecidos planos de saúde do Brasil.
Ocorre que mal-estar e acidentes não mandam aviso prévio. Nem escolhem dia da semana. No domingo, 3 de outubro, pouco depois das oito da manhã, a caminho de minha seção eleitoral, senti forte dor no lado esquerdo do peito, como nunca me havia passado. A impressão era de que tinha levado um soco no tórax. Continuei o percurso do convento à PUC-SP, uma distância de duzentos metros, desconfiado de ter sido acometido de um infarto. Não senti tontura, apenas a dor que se irradiava pelo lado avesso do peito.
Subi com dificuldade a rampa da PUC e quase me sentei para recuperar o fôlego. Teimoso, prossegui rumo ao meu dever cívico. (Sinto-me honrado em votar e serei a favor do voto facultativo no dia em que for também facultativo pagar impostos).
Ao me apresentar na seção eleitoral, a dor persistia. Não consegui me debruçar sobre a mesa para assinar o termo de comparecimento. Precisei erguer o papel. Pensei ao entrar na cabine: “Morro, mas com meu dever de cidadão cumprido.”
Eis que, na saída, me bateu forte ardor cívico. “Votei em prol da melhoria deste país. Tenho direito, como cidadão, a atendimento médico pelo SUS. Por que não recorrer a ele no dia da eleição?”
Devido às minhas relações de amizade, poderia ter buscado um atendimento privado. Ou internação em hospital conveniado com o meu plano de saúde. Anos atrás, ao apresentar o doutor Adib Jatene a Fidel Castro, num evento científico em Havana, o destacado cardiologista me disse à guisa de agradecimento: “Se um dia precisar de meus serviços médicos, estarei à disposição.” Respondi-lhe: “Agradeço, doutor, mas queira Deus que eu nunca me sinta obrigado a recorrer a eles.”
Tomei um táxi à porta da PUC e mandei tocar para o Hospital das Clínicas. Na recepção do Pronto Socorro, informei a uma funcionária que necessitava de atendimento. Talvez estivesse com um princípio de infarto.
Fui encaminhado à enfermeira Adriana, que me tirou a pressão: 14×8. Fez a minha ficha e mandou me apresentar a um funcionário que me pediu números de identidade, CEP e telefone. Não consegui lembrar de nenhum deles, embora a dor já se mostrasse menos agressiva. É que andava com a mente e o coração em ação de graças pela vida que me foi dada viver. Talvez tivesse chegado a minha hora. Um pouco mais cedo do que eu esperava. Mas quem é capaz de prever dia e hora da própria morte? Não diz Jesus que ela virá como o ladrão…
Tranquilizou-me não temê-la. Não tanto pela fé que me anima, e sim pelo sentido que imprimo à minha vida.
Da burocracia fui remetido a uma sala de espera, onde deixei a ficha sobre um balcão. Havia ali outras pessoas à espera de atendimento. Quinze minutos depois a ficha foi recolhida e, em menos de dez minutos, chamado a um consultório. A doutora Seila tirou-me a pressão, agora 13×8, e me encaminhou à doutora Beatriz A. Martins, diplomada ano passado.
Enquanto me movo de um lado a outro no Pronto Socorro, vejo o “circo dos horrores”: macas espalhadas pelos corredores; policiais trazendo vítimas de facadas, tiros e atropelamentos; mulheres grávidas preocupadas com o parto precoce; gritarias; e sangue, muito sangue. Mas havia em tudo aquilo uma lógica: todos que necessitavam de atendimento de emergência mereciam os devidos cuidados, ainda que os primeiros socorros fossem prestados nos corredores.
Doutora Beatriz retirou-me sangue e me fez ingerir dois comprimidos de AS. Em seguida, na sala de eletrocardiograma a enfermeira Ester me cobriu de fios. O eletro deu “normal”. Frequência cardíaca: 78 batidas por minuto. Ester me comunicou que infarto não tive. (A essa altura, a dor se resumia a um ponto no fundo do coração).
Fui remetido de novo à dra. Beatriz, que se fazia acompanhar pelo dr. Francisco Mazon. Pediu que eu retornasse à sala de espera até o resultado do exame de sangue ficar pronto.
Eram 10h. Preocupava-me a ida para Curitiba, convidado a participar, na tarde do mesmo dia, de debate na Bienal do Livro do Paraná. Meu voo sairia às 14h. Esperei até as 12h. Retornei à dra. Beatriz para avisar que iria embora. Ela me advertiu que deveria aguardar mais 40 minutos. Insisti que não podia esperar. Ela disse enfática: “Não podemos lhe dar alta. Se o senhor se for, será caracterizado como evasão hospitalar. E corre o risco de morrer em pleno voo.”
Em nome de meu oficio de escritor, optei pelo risco de morte e cometi o delito da evasão. Cheguei a tempo no aeroporto.
Ninguém no Hospital das Clínicas me identificou pelo nome que sou conhecido. Fui tratado como qualquer outro cidadão. E concluí que, ao menos ali, o SUS funciona. E muito bem. Eu é que sou um paciente impaciente…
Tudo indica que a dor adveio de uma contração muscular. Na véspera, indiferente à minha hérnia de disco, ajudei a arrastar uma mala com 70kg de livros. Fiz um esforço superior às minhas forças. Menos de vinte e quatro depois o organismo emitiu o seu protesto…
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade”, que a editora Vozes faz chegar esta semana às livrarias. www.freibetto.org
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