professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

O conhecimento da pessoa e da vida de Jesus Cristo – essa figura que passados dois mil anos ainda fascina e cativa a humanidade – tem necessariamente que passar por sua humanidade, trilhar seus caminhos de terra, viver e sofrer a perplexidade e as perguntas daqueles e daquelas que com ele conviveram para ter acesso a seu mistério.

A reflexão teológica procura, portanto, sempre seguir esse caminho e esse itinerário. A partir de baixo, da carne vulnerável, frágil e exposta de Jesus de Nazaré, um judeu entre tantos, somos chamados a colocar-nos a caminho, em busca do mistério do Deus que ele revela e da salvação que ele traz.

Há duas tendências dominantes na Cristologia hoje: a ascendente e a descendente. Não é legítimo prescindir de nenhuma das duas ao encetar a aventura de uma reflexão cristológica. A “cristologia ascendente” – que vai de baixo para cima, do humano para o divino – vem a ser a explicação mais plausível do mistério de Jesus Cristo. Mas não é uma explicação excludente. Também a “cristologia descendente” – de cima para baixo, do divino para o humano – tem um sentido e uma significação fundamentais para a fé.

A partir do momento em que sabemos que Jesus nos revela o que pertence à essência eterna de Deus, podemos falar de Jesus aplicando-lhe o que corresponde à essa essência eterna do divino. Mas, neste caso, trata-se de uma afirmação ou explicação subsequente. Porque o critério fundamental de interpretação do mistério é o que designamos como “cristologia ascendente”, ou seja: o desdobrar do mistério de Deus na vida humana de Jesus de Nazaré diante dos sentidos humanos. Isso é que vai possibilitar ao Novo Testamento proclamar que o mistério de Deus e o mistério da vida humana são um só e mesmo mistério.

Aqueles que conviveram com Jesus de Nazaré ficaram fascinados com sua personalidade. Parece-nos que aí se destacam três traços da pessoa de Jesus que constituem três vias de acesso a seu mistério. Em primeiro lugar, sua fidelidade ao Deus que ele chama de Pai. Em segundo, sua liberdade, consequência de sua experiência do absoluto de Deus, único ao qual entendia dever fidelidade radical. Em terceiro, o Reino, o projeto do Pai, que é fundamentalmente um projeto de inclusão de tudo e todos que estão à margem. A partir daí se faz patente a preferência de Jesus pelos marginalizados de seu tempo (os pobres, os doentes, as mulheres etc.) e como aí revelava a maneira de Deus se aproximar da humanidade.

Jesus era um apaixonado por sua missão e a entendia de uma maneira muito própria. No centro dessa missão estava o projeto do Reino do Pai, no qual consistia toda a sua paixão. Esse reino é dado a nós como graça, mas também como tarefa. Deve ser construído com todas as forças, embora seja dado por Deus como dom livre de seu amor. Jesus forma uma comunidade – a futura Igreja – que será a artesã desse projeto, encarregada de construí-lo no meio do mundo.

A primeira comunidade chega a reconhecer em Jesus o Messias esperado. Havia uma forte esperança messiânica no tempo de Jesus e os diversos grupos do povo de Israel esperavam por esse Messias. Jesus vai, então, tomando progressiva consciência do messianismo que o Pai deseja para ele e por isso recusa o messianismo davídico que está presente nas expectativas do povo e dos discípulos. Isso o empurra em direção à Jerusalém e à morte.

A partir do desejo do Pai, Jesus entendeu seu caminho e seu destino e assumiu sua morte. A comunidade primitiva leu a morte de Jesus, incompreensível no início, mas depois iluminada por Deus com a vida que não morre como a morte do Servo de Deus, Cordeiro que tira o pecado do mundo.

A Ressurreição de Jesus vem ao encontro das esperanças presentes no seio do Judaísmo, as plenifica e as supera. A Ressurreição é uma revelação e uma experiência que acontece dentro da história, mas que é transistórica, ou seja, supera a história e a transcende, sendo a palavra interpretativa do Pai sobre a vida e a morte de Jesus, revelando-o como o Filho Amado, que não foi retido no poder da morte, mas se tornou vida para todos.

Vivendo e anunciando a fé em Jesus Cristo, Messias e Servo de Deus, Filho querido e amado do Pai de todos os homens e mulheres, a Igreja dos primeiros séculos teve que lutar e refletir para encontrar palavras adequadas que dissessem teologicamente toda a riqueza e a profundidade do seu mistério. Assim é que no Concílio de Nicéia (+325) encontra a maneira de dizer que Ele é consubstancial com o Pai; o concílio de Constantinopla (+381) confirma isso. E quase dois séculos depois o concílio de Calcedônia (+451) encontra a maneira definitiva e feliz de dizer que em Jesus há a natureza divina e humana convivendo harmonicamente e assim Ele revela Deus a nós e nos revela a nós mesmos, oferecendo-nos gratuitamente a salvação.

Ao final deste texto esperamos que estas reflexões, modestas e limitadas, possam ajudar as pessoas a refletir amorosa e profundamente sobre o mistério que nos salva: o mistério do Filho de Deus encarnado que faz a história girar sobre seus gonzos e introduz a humanidade no interior do mistério de Deus. Que um maior conhecimento desse mistério central da fé cristã possa ajudar-nos a ser discípulos mais fiéis e diligentes do Senhor que por nós se fez humano a fim de construir seu Reino em meio à história.

Maria Clara Bingemer é autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/

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