Embora não tenha nenhuma formação de agronomia, ostentando apenas minha condição de curioso e comedor de manga, declaro, para os fins que se fizerem necessários, que nenhuma fruta neste país a suplanta em termos de variedade, dentro das mutações obtidas, quer pelo uso das técnicas mais modernas, quer por ocorrências da natureza.

Da mangueira, a gente não pode esperar passos curtos, ante o panorama inusitado que pode provocar. Não é sem motivo que já vi, na década de 1960 do século passado, no povoado Bom Jardim, em Itabaiana, uma mangueira cujo tronco se dividia em dois. Em um deles, a manga nascida era espada; em o outro, rosa. Também no sítio de meu sogro, no Robalo, em Aracaju, a mesma constatação. Desta vez, com manga-espada de um lado e manga-caxangá do outro. A manga carrega, assim, aquela fertilidade tão própria das mulheres de antanho, que costumavam parir, muitas vezes, vinte filhos, só parando a produção quando resolviam se libertar do marido, assinando carta de alforria no sentido de que, doravante, fossem gastar suas energias lá fora do âmbito sagrado e doméstico do lar, o que quase todos obedeciam com o máximo de prazer.

Toda esse bolodório, reconheço, vem do fato de ter encontrado, enfim e finalmente, a manga-facão na feira do Grageru, em Aracaju, no início de uma manhã carregada de chuva. Lá estava, exibida em um cesto, a manga-facão grande, enorme mesmo, salpicada de verde e amarelo, como se a natureza quisesse prestar uma homenagem às cores da bandeira do Brasil. Uma manga patriota até na cor, diria. Lembrei-me, então, da manga-facão dos meus tempos de menino, ouvindo papai dissertar sobre a matéria, ele que foi perito na arte de comer manga, independentemente da origem, sem esquecer a jaca mole, cujos bagos – eu vi, não minto -, muitas vezes, chegou a devorar uns cinquenta nas refeições do meio dia. Caroços que, pela quantidade, parava no final do almoço, para, candidamente, contar um por um. Lá está meu paiem sua loja, com algumas mangas-rosa, oriundas do quintal da casa de sua irmã, no bairro Santo Antônio, em Aracaju. Depois de devorada a manga, o caroço ainda merecia algum ataque, para, entonces, não existir mais um ponto sequer de polpa, jogá-lo pela janela no fundo da loja. De um desses caroços, foram vários, nasceu uma mangueira, que meu pai chegou a colher os frutos produzidos. A manga nascida não era rosa, como a do caroço que lhe deu origem. Apresentava-se com cor amarelada, quase laranja, sem carregar o rosa ancestral. Nome que lhe dava o meu pai: manga-facão. Durante décadas e décadas, não vi mais a manga-facão, como se aquela espécie tivesse desaparecido também com a infância que ficou para trás, até que, no sábado aludido, a manga-facão me aparece, com o nome assim pronunciado pela alegre vendedora, ao preço módico de dois reais para cinco mangas.

Comparei as duas mangas, no que pude. A da infância, fruto do caroço salivado, a sofrer uma mutação. E de agora, comprada em feira recente. Totalmente diferentes, na cor e no formato. No sabor, não sei. Não há como guardar na cabeça o sabor de uma manga comida quando ainda era menino. É tempo demais que já passou pela ponte da vida, nos altos e baixos que a idade vai proporcionando, não sendo factível guardar o seu gosto por tempo tanto.

Mas, de tudo, um fato positivo. A manga-facão não ficou limitada ao território de Itabaiana, nem também a mangueira que meu pai, jogando o caroço fora, fez nascer, árvore que, a esta altura, algum machado já deve tê-la cortado. A manga-facão aparecia, aos meus olhos – que comprei, e comi, com a calma dos que não tem pressa, cortando cada pedaço, faca apropriada, saboreando cada um como se tivesse em mãos um manjar dos deuses. Tempo bom o de hoje, da maturidade outonal quando a gente, sem querer, procura os valores da infância, em um mergulho no passado, que ficou tão distante, na tentativa de reconstruir um mundo que não mais existe, a não ser na força de minha saudade, que une no mesmo laço a figura do meu pai e a manga-facão.

Contudo, a minha gulodice, ao saborear na manhã seguinte, também de chuva, outra manga-facão, não podia imaginar a importância que representou para avivar lembranças esquecidas lá, bem longe, nos cafundórios da infância.

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Publicado no Diário de Pernambuco

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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