Conheço um rol de tiozinhos que até hoje choram por dentro quando escutam a música Born to be wild.
Aos incautos, é um heavy metal de 1967, sucesso dos canadenses do Steppenwolf.
Mexe com os brios de todas as gerações desde então. As de ontem, choram pela liberdade pela qual tanto esperaram conseguir um dia. E as de hoje choram pela liberdade que nunca tiveram na vida.
Quando toca a música, eles pensam em jogar tudo para o alto, subir numa motoca e pegar a estrada. Sem rumo e sem expectativa. É quando o interfone toca e interrompe o delírio. É o entregador da farmácia trazendo o remédio para a febre das crianças.
Ou para o seu colesterol que atingiu o Everest de novo.
A cada dia que passa, fazer uma mochila e pegar a estrada, apenas pelo prazer de não saber o que encontrar, tornou-se um elixir impossível para as pessoas normais. Disponível apenas para selvagens. O por quê, ninguém sabe.
Ou sabem e não querem admitir.
Verdade, não temos a Harley Davidson do Peter Fonda e do Dennis Hopper. Nem somos selvagens feito o Mickey Rourke em cima daquela moto envenenada de Rumble Fish.
Mas não precisa. A gente pode dar um primeiro passo de bicicleta mesmo. Quem sabe com rodinhas laterais para ajudar na sustentação.
Dá para ir até a cidade ao lado. Pegar um ônibus, o carro de passeio, umapassagem na promoção.
Conhecer o vilarejo só por conhecer. Com olhos e ouvidos bem abertos, você encontra relíquias humanas e, se tiver sorte, depois de alguns anos termina encontrando a si mesmo. Vai estar lá, perdido entre fotografias e memórias a tiracolo.
Um exemplo glutão: uma das melhores bistecas de porco caseiras que já comi foi numa cidadezinha pernambucana chamada Angelim, a apenas 200 km de Recife. Obra de uma senhora que transformou a sala de casa em restaurante. E não faz a menor propaganda.
A lista de pequenas selvagerias é quase infinita. Algumas das pessoas mais interessantes que você vai conhecer, tenha certeza, estão nos lugares menos esperados. E nem precisa ir tão longe.
Se tudo der errado, você pode comer milho assado enquanto a criançada brinca no meio da pracinha como se não houvesse amanhã.
Porque, talvez para você e para um tanto de gente, aquelas crianças não têm amanhã. Para quem quase chora ao ouvir Born to be Wild, são crianças sem a menor perspectiva de futuro simplesmente porque nada acontece e todos os dias são exatamente iguais.
Dias bem diferentes dos seus, mas quão diferentes de iguais?
Ontem a vida era bem mais difícil e mesmo assim a gente conseguia atravessar oceanos, escalar montanhas e desbravar o sertão.
Hoje temos caixa eletrônico, cartão de crédito, celular no bolso, câmera digital, GPS e Google Maps. Tudo para facilitar nossa vida selvagem pelo desconhecido, mas ninguém quer sair do canto.
Seus amigos moderninhos vão dizer que é o preço do casamento, é o valor pago pelo comprometimento de uma vida profissional “melhor” e “estável”.
Acontece que hoje ninguém mais pode sequer passar uma tarde fora, oxalá um fim de semana inteiro totalmente offline sem precisar dar satisfação para esposa, filhos, sócios, credores, funcionários, porteiro, cachorro, papagaio…
Não sei onde encontrar a estabilidade nisso.
Não precisa juntar-se a mim e virar eremita insone. Não precisa abandonar a esposa e os filhos. Mas todo mundo precisa conhecer o lado selvagem da rua e de uma vida sem pares para poder dar valor ao que é realmente importante.
E isso tudo a gente pensa enquanto escuta Steppenwolf no som do carro durante os 45 minutos de congestionamento até o mercado e outros 45 minutos na fila do caixa e outros 45 minutos ao chegar em casa para ouvir que faltou comprar o leite desnatado de um bicho que não é vaca e o papel higiênico pompom perfumado.
Daqui a alguns anos você vai se perguntar porque não foi conhecer a Malásia ou Istambul, Porto Alegre ou Cuiabá, e finalmente vai descobrir que não tem a resposta. Simplesmente porque esqueceu da pergunta, para começo de conversa.
Basta cavar um buraco no chão e você chega na China. Mas agora não dá mais, a coluna e a artrite não deixam.
Obs: Imagem enviada pelo autor.