As palavras não perdem o significado no correr dos tempos. O que era escuro no século dezenove, permaneceu escuro durante o século vinte, assim ingressando no século vinte e um. Mas, muitas vezes, o termo ganha outros significados, ou, ainda, passa a abranger horizontes mais amplos.

Parto de um exemplo colhido em Machado de Assis, mais precisamente em Memorial de Aires. O conselheiro Aires, viúvo, com sessenta anos, em diálogo com sua irmã, Rita, igualmente viúva, considera-se inadequado para casar com Fidélia, viúva também, de vinte e cinco anos, em face da idade portada. Na sua opinião, Fidélia deveria casar-se com homem fresco.

A frase do conselheiro Aires, em toda a sua abrangência, é essa mesmo:

– Com qualquer, não; pelo menos, é difícil;, um sujeito fresco,- continuei enfunando-me e rindo.

Cabe um escorço (parece linguagem de tese acadêmica) nos romances machadianos, pródigos no uso da palavra fresco. Eça de Queiroz, do outro lado do Atlântico, em seus contos, também utilizava e abusava do termo fresco.

Mas, desejar a viúva Fidélia um marido-sujeito fresco é algo que, nos dias atuais e muito para trás, se dito na presença da noiva, causaria o maior constrangimento possível, sendo motivo até para um bom duelo, se a lei ainda o permitisse.

Aí cabe a explicação que o leitor já captou: o termo fresco apresenta o significado de novo, simplesmente novo. E era justamente assim que Machado de Assis usava, isto é, sujeito fresco=sujeito novo.

O tempo, contudo, trouxe para a palavra fresco um outro significado, que, à época, não se usava, ou não se conhecia. É mais provável a segunda hipótese. Fresco passou a abarcar o sujeito efeminado, cheio de gestos dengosos, que se sobressai ante os outros pela queda dos braços, pelo rebolado do caminhar, pelo gesticular aberto das mãos, pela maneira com acentua certas palavras, entre outros fatores. Daí, se o conselheiro Aires estivesse vivo hoje, por certo, com toda a certeza, não recomendaria marido fresco para ninguém, sobretudo para a viúva Fidélia (coitada dela!). E se recomendasse, e esta aceitasse, naturalmente, entraria depois com ação por perdas e danos, face o defeito redibitório que acompanharia a mercadoria para o segredo das noites quentes e frias.

Ainda hoje, no interior sergipano, pelo menos, em Itabaiana, o termo fresco só é usado para a carne do boi vendida no mesmo dia em que o animal é abatido. Carne fresca é a expressão vigente, ao lado de uma antiga, que muito já crismou os mercados: Carne verde. Acho que verde também no sentido de ser nova, isto é, do gado ter sido abatido há pouco tempo, me arrisco a explicar.

Em todo caso, a palavra fresco cresceu em seu significado para abranger situações outras, ficando em desuso com relação a determinados aspectos.

Diferentemente de fresco, o verbo aposentar perdeu o seu significado histórico. Foi lendo o Memorial de Aires que vi uma expressão, mais ou menos, assim – porque não se aposenta em minha casa? – que me fez procuraro dicionário para dissipar as dúvidas. Aposentar, no caso, exprime hospedar-se. Não sabia. Daí a fortíssima ligação de aposentadoria com aposentos. Um gramático – eu sou apenas o curioso – explicaria com ciência ímpar. Eu, não, em lugar de esclarecer, boto mais lenha na fogueira, porque, afinal, com sessenta anos, não posso ter mais a mente fresca.

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Publicado no Diario de Pernambuco

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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