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            No meio da zoeira da cidade, quando o trânsito agoniza embaixo da janela ou um martelo e uma serra dão conta da obra ao lado, às vezes penso em como seria bom poder desligar a audição, deixar de ouvir e mergulhar num silêncio total.
            A gente ouve camadas de sons. Um ronronar distante de motores que nem se sabe onde estão, um barulhinho gostoso de folhas que se roçam com o vento, vozes que espetam o silêncio de repente. Freadas, buzinas, estouros, foguetes inexplicados. Ruídos que vêm do alto, do vizinho que arrastou um móvel ou pisou forte com o salto contra a madeira do assoalho, coisas que caem, louças que se quebram, água que corre. Até tiros, às vezes, para lembrar onde estamos. E música. A música que pusemos pra tocar, que nos dá prazer; a música que o alto-falante toca lá fora, de um carro qualquer; a que alguém por perto resolveu ouvir bem alto, porque está no banheiro e o aparelho de som no quarto.
            Aí imagino como seria ir deixando de ouvir cada camada dessas, começando pela banda que grita, apagando o som do carro, que parece arranhar todos os sentidos, e o próprio Tom Jobim que nos embalava. E logo somem os ruídos intempestivos, os gritos inexplicados, e restam as folhas farfalhando, o ronrom distante; mas mesmo esses vão se diluindo numa espécie de vazio, que cresce e se espalha. Não ouço mais nada.
            Aproveitando essa paz em que nem o silêncio faz seu habitual zunido manso, fecho também os olhos e deixo as ideias chegarem à tona. A princípio um pouco assustadas como baratinhas flagradas pela luz, elas, as ideias, hesitam. Mas pouco a pouco vão emergindo de seu escurinho básico e se mostram. É preciso agir rápido, antes que o feitiço acabe, a mágica se desmanche e cada coisa volte a emitir seus ruídos.
            De repente, uma dúvida traz um susto nas asas: e se for pra valer? Se nunca mais Tom Jobim, nem Chet Baker, nem Mahler? Não saber se alguém abriu a porta, não ouvir o chamado do telefone, não saber que o portão do estacionamento abriu às duas da manhã? Não mais a voz do marido, dos filhos, das crianças que dão um fresquinho na alma?
            Alívio: destamparam-se as orelhas. A camada das folhas subiu de tom: venta muito, a cortina voou lá pra fora e um trovão sacode tudo, aleluia. Mas como seria bom, de vez em quando, esse oásis de silêncio total, que nenhum protetor de ouvidos pode dar…

Obs: Imagem enviada pela autora: Cordilheira do balsamo em El Salvador

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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