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PARTE II – MARANHÃO

7. Em São Luis aguardavam-me Nataniel, Caio Samuel e Natanielly, suas crianças. A última já de casa, pois quando vem ao Recife para consulta médica, já sabe, entrar e vai direto a “seu” quarto. Aguardavam-nos a sempre simpática Ana Rosa, com Deca, sua auxiliar. Receberam-me em casa, no bairro São Cristóvão. A casa se situa no bairro maior de São Cristóvão, que vem desde o aeroporto para encontrar-se com os bairros de Santa Clara e São Raimundo. Onde estávamos se chama de ‘Jardim São Cristóvão’, eufemismo para designar uma área surgida de um grande loteamento que deu origem a várias vilas. Ao caminhar pela manhã, é possível ver ainda a marca de berço: “casas de conjunto”, bastante parecidas entre si, amplos terrenos baldios denotando abandono, ruas enlameadas, sem calçamento, algumas com asfalto, só de capa, sem a devida preparação do terreno para recebê-la, cheias de buracos, propaganda de eleição, imagino, como já bem conhecemos. Agora, com o “progresso”, vai tomando nova aparência: os muros sobem, grades aparecem, fachadas vão-se diferenciando, as casas se defendem da rua; o estilo de moradia classe média, aos poucos, vai-se impondo, a revelar apartação, medo, isolamento até da vizinhança, o carro tornando-se a maneira usual de abordar a rua. Na avenida, vê-se um “Ximenes Buffet”, construção grande, imponente, desejando ser elegante e que já indica novos estilos de vida e convivência. Nas reformas, feitas de maneira inadequada, por mera intuição do proprietário, o cimento destroi os quintais e devora áreas de sombra e fruto, o calor “naturalmente” aumenta. Outros seguem melhor padrão, sob orientação de arquitetos. Há enorme campo da Aeronáutica. Uma rua até se chama “Rua do Muro” por correr ao longo do muro sem fim que circunda a área. É um extenso bosque urbano, abandonado, que antigamente servia a exercícios de aviação. De quando em quando, aviso garrafal com ameaças legais proibindo entrada. O povo, porém, vai “furando” literalmente a lei com enormes buracos no muro que servem de escoadouro da água represada no leito da rua, para depositar lixo e, dizem, esconder indivíduos, particularmente ciclistas, que se põem de tocaia para assaltar pedestres. O “Jardim” é caso típico, muito lixo espalhado, festa de urubus, chega até a obstruir a entrada de ruas, a indicar, de um lado, o nível de educação do povo, e, doutro, a precariedade dos serviços públicos de ordenamento urbano e de limpeza. Vê-se que o que é público é sentido como terra de ninguém.

Por coincidência, era o dia do aniversário de Geraldo Magela que mora do outro lado da cidade, no Anjo da Guarda. Fomos lá e encontramos seus familiares, em sua maioria da Assembleia de Deus. Participamos de um culto doméstico de leituras bíblicas e cânticos. Momento edificante, gente piedosa. O avô, um senhor de idade, cantava e com as filhas e a esposa, mãe de Geraldo, já formavam um coral.

8. No dia seguinte, às 8hs da manhã fui recebido em audiência pelo Arcebispo católico romano, Dom José Belisário, franciscano, meu amigo já de algum tempo, companheiro querido dos cursos ecumênicos de bispos, promovidos pelo CESEP, de São Paulo, quase sempre em outubro a cada ano. Conversamos e, assim, pusemos em dia assuntos e notícias. Por ele fui convidado a participar de audiências pública, convocada pela Comissão de Justiça e Paz, para as 10h da mesma manhã.

A Comissão havia convidado gente da Igreja, ONGs e autoridades do município, do ministério Público, do IPHAN, da Segurança Pública. Tratava-se de discutir a situação do Centro Histórico, sua degradação, e a insegurança e violência ali reinantes. Como fato emblemático, salientava-se o assassinato de um seminarista que teria estado presente à audiência, se não tivesse sido mortalmente assaltado, à porta de casa, alguns dias antes. Seu pai estava presente. Fomos das 10h até as 13h. O conteúdo das intervenções foi de alta qualidade. Éramos em torno de 50 pessoas, a sociedade civil em diálogo com o Estado em busca de soluções para um problema que afeta toda a população da capital. O mesmo problema de todas as nossas cidades, o aumento constante da violência e do medo. É pena, São Luis é uma das cidades mais lindas do Brasil, com um conjunto arquitetônico colonial invejável. Insere-se no quadro de um estado dominado por oligarquia familiar e cuja metade da população, dizem, depois de mais de quarenta anos de prepotente domínio, recebe Bolsa Família. Resultado de 500 anos de opressão, de alguns poucos serem donos do país, agora tornado mais evidente pelo acelerado e desordenado processo de urbanização. Além de impressionantes depoimentos, ouvimos diagnósticos e sugestões apresentadas com grande competência. As autoridades presentes pareceram sensíveis à problemática. Impressionaram-me, particularmente, a exposição da Superintendente do IPHAN, a reflexão da Irmã Anne, religiosa católica romana, e as competentes intervenções de dois arquitetos muito comprometidos com a cidade.

A Comissão de Justiça e Paz me ofereceu almoço na “Cabana do Sol”, bem perto da praia. Local agradável e bonito, daqueles onde a gente leva pelo menos 30 minutos para aguardar uma mesa. Saboreamos gostoso prato de peixe regado a diálogo muito fraterno e agradável.

Em seguida, voltamos à sede do arcebispado para breve reunião na sala da Comissão. Nosso diálogo continuava, agora incluindo mais algumas pessoas. Falamos de como vai a rede brasileira de Justiça e Paz, e de como tornar essa rede sempre mais ecumênica com a inclusão de pessoas de várias Igrejas cristãs. A Comissão tem a vocação natural de torre de vigia da cidadania, é a Igreja em articulação com a sociedade civil para fomentar o surgimento e a organização daquela “assembléia” alternativa” (“Ecclesía”) de que fala o Apóstolo São Paulo em suas Epístolas. A Igreja não é meramente uma associação religiosa, deve ser, antes, aquela parte da sociedade civil que começa a experimentar o processo de libertação, organiza-se e luta, dissemina o fermento e o sal da liberdade, da justiça e de paz, e sabe que “a sabedoria e o poder de Deus” estão no povo. Igreja é parte da sociedade civil em processo de conscientização social, cultural e política e que tem consciência de que a luta pela transformação da vida não é só nossa, é luta de Deus, o qual, pela cruz de Cristo, revela-se solidário com todos os crucificados pelos sistemas de opressão deste mundo, como podemos ver claramente na reflexão do Apóstolo na 1ª Carta aos Coríntios, cap. 1 a 4. “Evangelizar” é anunciar a boa notícia de que é com o povo sofrido e não com os poderosos opressores que Deus está em aliança. Mas o povo tem de saber disso, disso convencer-se e com isso ter força na luta para mudar o mundo. Evangelização tem tudo a ver com conscientização (vem à memória o saudoso Paulo Freire) e com transformação. A cruz de Cristo é o que há de mais explosivo: “A linguagem da Cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1, 18 – cf Rm 1, 16).

À tardinha, recebi uma pessoa para conversa reservada.

9. À noite, tivemos proveitoso encontro com a comunidade do P.M. da Anunciação. Estávamos em trinta, incluindo algumas poucas crianças. A maioria tem participado dos encontros regulares de oração no sábado à tarde, outras pessoas são simpatizantes ou simplesmente amigas. O grupo freqüente é em torno de vinte pessoas. Antes de abordar as questões levantadas, sugeri que falassem de como se sentem na comunidade: “É como sentir-se à vontade, pois só assim a gente se sente bem”. “Temos liberdade de falar e expressar o que se sente”. “Cada pessoa é valorizada, tem vez e voz”. “A gente pode até ser de outra Igreja, como eu sou católico, mas aqui me sinto acolhido”. “A gente tem o sentimento de gostar de vir aqui”. “É uma comunidade terapêutica, a gente partilha problemas de vida e pelo diálogo chega até a experimentar a cura”. Pedi, então, que as pessoas manifestassem elas mesmas as perguntas que tinham em mente sobre Anglicanismo.

Finalmente, procurei responder às perguntas, que me ofereceram o roteiro de uma breve palestra sobre Anglicanismo:

a) O significado do nome da Igreja, seus objetivos, suas metas e seu “diferencial”;

b) Qual a sua identidade e qual a relação com a Igreja Católica e as evangélicas;

c) Quais as doutrinas centrais da Igreja;

d) A importância central da vida em comunidade: lugar de partilha de relações e da vida, e de participação;

e) O que muda depois desta visita do bispo, quais os próximos passos;

f) O papel das mulheres e a organização de seus ministérios pela UMEAB;

g) A relação do P.M. da Anunciação com a Diocese. Como a Diocese nos vê.

10. Pela manhã estivemos, Nataniel, Ana Rosa e eu, a preparar o culto do sábado. Ana Rosa é a Ministra do Louvor e Nataniel é o Ministro Encarregado. No sábado serão, ele, confirmado, e, ela, recebida na comunhão da Igreja. Além disso, ele será instituído Ministro Pastoral Auxiliar, no P.M. da Anunciação, juntamente com Geraldo Magela, este para encarregar-se de obra missionário no bairro Anjo da Guarda enquanto aguarda o reconhecimento da ordem de Presbítero.

À tarde, recebi o Rev. Alberto Pires, do clero da Diocese, que há anos se tem considerado “clérigo em exílio”, sozinho e isolado em São Luis. É professor e presta serviço religioso a algumas poucas comunidades que o procuram. Solicita reintegração ao quadro do clero diocesano. Foi um reencontro da grande satisfação, pois não o via há mais de 10 anos. Tem tido desde o final dos anos oitenta forte engajamento social junto a gente sem teto e a ocupações de terra na capital maranhense.

À noite, participei com Geraldo de encontro de estudo bíblico junto com o pessoal do CEBI, na residência de João Tavares e Sofia, bem conhecidos do Rev. Félix. A partir de Eclesiastes meditamos sobre a dor, a morte e o luto como situações pedagógicas que nos levam a compreensão mais profunda e mais plena da vida, e podem provocar mudanças profundas nos valores e no modo de viver. Foi bonito momento de partilha e amizade.

11. Culto de instalação do P.M. da Anunciação, Confirmação e Instituição

Às 7:30h da noite tivemos nosso momento culminante, o culto eucarístico. Éramos 60 pessoas: do grupo regular do sábado, pessoas amigas e familiares, membros de comunidade luterana e três amigas católicas romanas, ligadas à Comissão de Justiça e Paz.

Desde março passado, havia sido autorizado o P.M. da Anunciação, sob a liderança “provisório” ou “informal” de Nataniel, pois ainda não era nem confirmado na Igreja. Neste sábado, dia 17 de julho, finalmente, fazíamos a solene instalação da comunidade, semente da presença de nossa Diocese em São Luis.

Começamos a ter três pessoas anglicanas: Nataniel que se confirmava e Ana Rosa e Geraldo Magela que eram recebidos em plena comunhão como membros da Igreja. Com o altar e os paramentos em vermelho, simbolizávamos presença do Espírito Santo que, como fogo, queima nosso lixo, aquece nosso coração com a paixão pelo Evangelho e ilumina nossos caminhos no seguimento de Jesus.

Em seguida, Nataniel era instituído Ministro Pastoral Auxiliar para encarregar-se do P.M. da Anunciação, e Geraldo instituído Ministro Encarregado da Obra Missionária no bairro Anjo da Guarda, literalmente um território de missão. Bairro de periferia, com inúmeros problemas, desde desagregação familiar, até distribuição de drogas, assalto e violência doméstica e de rua.

Cantamos com alegria os louvores de Deus, escutamos a palavra de Isaías que nos descreve a tarefa messiânica da libertação (61,1-4) e as bem-aventuranças, segundo São Mateus, que nos anunciam a identidade do povo de Cristo: pobres segundo o Espírito de Deus, povo de paz, de misericórdia, de solidariedade com a gente pisada, sedento e faminto de justiça (5,1-2). Entre as leituras, como salmo de meditação, cantamos “Senhor, eu sei que tu me sondas”, o salmo da vocação, consciência da presença de Deus no mais intimo de nós – “interior intimo meo”, “mais íntimo que meu próprio íntimo”, dizia Santo Agostinho. Um momento alto foi a invocação do Espírito Santo antes da imposição das mãos: “Espírito, Espírito, que desce como fogo, vem como em Pentecostes e enche-me de novo”, com todas as pessoas com a mão direita estendida sobre Ana Rosa, Nataniel e Geraldo.

A comunidade inteira, comunidade ecumênica, a invocar com entusiástica vibração, a descida do Fogo do Céu.

A liturgia foi simples e solene ao mesmo tempo, vivida com intensa concentração. Celebrávamos a misteriosa maravilha do memorial da presença de Jesus conosco, mas, ao mesmo tempo, sentíamos toda a nossa pequenez, pobreza e precariedade. Usávamos a sede da associação do bairro. Igreja como tenda, nômade, que se arma e desarma reiteradamente. A maravilha do mistério sublime que se deixa conter na precariedade de nossos vasos, encarna-se em nosso quase nada. Diante do sistema do mundo nada significamos, tudo o que é poder passa ao largo. Sentia-nos como um casal de namorados que se beija apaixonadamente, na sublime experiência de um feliz instante de eternidade, na esquina de uma avenida qualquer de cidade grande, por onde tudo corre sem se dar conta do “evento” de amor que se celebra sem alarde, sem “gritaria nas praças”, ignorado. Que pode surgir dali?

Que poder de transformação pode brotar de apenas um beijo apaixonado? No entanto sabemos que uma única pessoa pode ser importante para a marcha do mundo, pensemos na negra Rosa dos Estados Unidos cujo ousado gesto detonou a revolta dos direitos civis e mudou a Constituição, em Martin Luther King, em Dom Helder Camara, em Nelson Mandela… Um casal já é mais uma família, uma pequena comunidade… aí pode estar o útero gerador de grandes sonhos e grandes coisas. Não foi assim que se deu com a jovem pobre da periferia do mundo que era Nazaré? Basta acreditar que em nós está a sabedoria e o poder de Deus (1 Cor 1, 17-2,16), e essa fé removerá montanhas.

12. Domingo, 18, dia de descanso, com passeio na praia em dia chuvoso e, finalmente, almoço de capão caipira no “Recanto do Cabral”. Estávamos nós da casa de Nataniel e Ana Rosa, mais Geraldo e Fernando Rites. Foi Lamentável o desencontro com Fabiano, simpático estudante de Teologia luterano, que desejava muito também estar conosco.

13. Dia 19, retorno ao Recife, às 19h, depois de um dia calmo de leitura e preparação da bagagem.
Recife, agosto de 2010
+ Sebastião Armando, Bispo Diocesano

* Bispo da Diocese Anglicana do Recife – DAR
www.dar.ieab.org.br

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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