professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Nos anos 1990, eu trabalhava meio expediente como pesquisadora no Centro João XXIII de Investigação e Ação Social dos jesuítas. Um dia veio procurar-me um intelectual judeu que eu conhecia. Propôs-me fazer um evento conjunto com a Associação Israelita do Rio de Janeiro (ARI) para celebrar os 30 anos da morte de João XXIII, por quem a comunidade judaica tinha verdadeira veneração.
Aceitei com muita alegria. Preparamos o evento, que foi emocionante para judeus e cristãos, e mesmo para outros de nenhuma religião que ali estiveram. Ao final foi servido um lanche. Notei no ar um certo constrangimento e logo percebi por quê. Os sanduíches estavam recheados com presunto. Havíamos nos esquecido de que os judeus ortodoxos não comem carne de porco.
A dificuldade foi rapidamente sanada, mas aquele episódio ensinou-me muito. Vi que ainda estávamos – como ainda estamos – no diálogo interreligioso e temos um mundo a aprender. Dispor-se a dialogar com o outro, o diferente, o que pratica outro credo implica abrir-se a suas convicções e respeitá-las, a fim de que haja convivência fraterna e o diálogo possa acontecer.
Na Alemanha, acontece neste momento um episódio que lembra o que narrei acima. Yunus, de 17 anos, aluno de um colégio ao norte de Berlim, acaba de ir à última instância jurídica do país, o Tribunal Administrativo de Leipzig, para reivindicar um lugar fechado onde possa, durante o horário escolar, fazer suas orações tais como manda o Alcorão. Yunus é muçulmano.
Até agora a prefeitura de Berlim tem proibido aos muçulmanos rezarem publicamente nos estabelecimentos de ensino para preservar a neutralidade. Mas pelo que se percebe, e o caso de Yunus deixa bem patente, a solução deste impasse não é tão fácil. Por um lado, a busca de uma neutralidade revela intenção conciliadora por parte das autoridades alemãs que desejam evitar polarizações, divisões e conflitos devidos a diferenças religiosas. Por outro, a demanda de Yunus é mais do que justa.
Ele tem fé, é adepto e praticante de uma religião. Deseja apenas um lugar adequado para realizar suas práticas de piedade. Tem o direito de fazê-lo? Parece-nos que sim. Já desde o ano passado Yunus fizera uma petição no sentido de dispor de uma sala de orações na própria escola, onde pudesse cumprir com os preceitos de sua fé.
A recusa do juiz o fez ir ao Tribunal Estadual e, com a recusa deste, à suprema instância. O país inteiro está em suspenso diante da reivindicação do jovem. Se este consegue o que pede, outros poderão exigir o mesmo. O estado laico se preocupa sobremaneira. Receia conflitos nas aulas, transtornos que desacreditem as tão renomadas e qualificadas escolas alemãs, que preparam seus alunos para frequentar as melhores universidades do país e do mundo.
Maior ainda a preocupação se se leva em conta que há pouco mais de um ano foi realizado um plebiscito sobre a obrigatoriedade ou não da aula de religião. O projeto do governo que substituía a disciplina “religião” por “ética”, para evitar a separação das classes em grupos religiosos antagônicos venceu. Se Yunus vencer, esta vitória e a conciliação que ela alcança ficam seriamente ameaçadas.
O problema é complexo. Queira Deus que aprendamos com ele. A pluralidade e a convivência das diferenças não são automáticas nem espontâneas. Exigem constante conversão e longo aprendizado. A secularidade que parecia haver tomado conta de todo o mundo ocidental apresenta brechas largas por onde jorra perplexidade e espanto.
O que têm a dizer os mestres da suspeita, os ateus modernos e pós-modernos, os indiferentes e os céticos diante do fato de um adolescente de 17 anos recorrer a um supremo tribunal para conseguir o direito de… rezar? Certamente – e graças a Deus! – o mistério do ser humano ainda está longe de ser decifrado.
Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/
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