Padre Beto 8 de setembro de 2010

www.padrebeto.com.br

Paulo havia levantado bem cedo, tomou rapidamente seu café da manhã, despediu-se friamente de sua esposa sem notar o que ela lhe dizia, e dirigiu-se para o escritório demonstrando pelo caminho uma clara irritação com a quantidade de veículos lentos no trânsito. Paulo teria mais um daqueles dias em que a agenda está lotada. Ao entrar no elevador, deparou-se com um velho de olhar sereno e um sorriso no rosto. Paulo o cumprimentou-o com um “bom dia”, sem dirigir-lhe o olhar. O velho retribuiu o cumprimento e, rompendo os limites da simples cortesia, perguntou-lhe: “Para onde você está indo?” Transpirando um pouco graças à correria, Paulo respondeu sem muito refletir: “Para o décimo quinto!” O velho, porém, resolveu repetir a pergunta: “Para onde você está indo?” Paulo, estranhando a insistência mas compreendendo que talvez o velho não tivesse uma boa audição, respondeu novamente aumentando o volume da voz e demonstrando uma certa irritação: “Para o escritório!” Foi quando o elevador parou no décimo andar, o velho ao se retirar, olhou fixamente para Paulo e com um sorriso maior no rosto, perguntou como se fosse a primeira vez: “Para onde você está indo?” O velho desapareceu sem aguardar uma resposta. Paulo parou para pensar realmente no assunto.

Diariamente fazemos perguntas do tipo “que horas são?”, “que dia é hoje?”, ou comentários como “ele está louco!”, “hoje estou muito feliz”, “como aquele cara é estranho”. Poucas vezes, ou quase nunca, ouvimos questões do tipo “o que é o tempo?”, “o que é a loucura?”, “o que significa a felicidade?” ou “o que é o ser humano?”. Na verdade, encontramos aqui duas atitudes mentais de diferentes níveis. Enquanto a primeira faz com que o ser humano permaneça como observador dos fenômenos, a segunda o leva à sua compreensão. Justamente nesta segunda atitude mental desenvolvemos a prática de filosofar. O filósofo é o apaixonado pelo conhecimento (do grego, sophia = conhecimento; philein = amigo, amante). A paixão por aquilo que está além das aparências seduz o ser humano a mergulhar nos fenômenos buscando encontrar seu sentido. Para filosofar são necessárias, porém, algumas condições. A primeira é, sem dúvida alguma, o tempo livre. Quanto mais nos sobrecarregamos com afazeres ou com a luta pela sobrevivência, menos espaço possuímos para a reflexão. Segundo Aristóteles, o ócio é a plataforma perfeita para o pensamento filosófico. Ele é o espaço de tempo que se basta por si só, ou seja, que possui simplesmente um único objetivo: a ociosidade. Este espaço prazeroso de descanso, calma e tranqüilidade não é, como podemos pensar, um “tempo perdido”; ele se constitui em uma terra fértil para a criatividade e o pensamento. Este prazer é fundamental para a vida, conforme esclarece Albert Camus. Para o filósofo, o ser humano se liberta do círculo vicioso da vida e encontra o sentido desta quando descobre o tempo livre para pensar. Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde ela caía de novo, em conseqüência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Mas Sísifo descobre, no momento de assistir o rochedo voltar ao lugar de origem, um momento de reflexão, Sísifo torna-se neste espaço de contemplação um filósofo.

Além do tempo livre, o filosofar possui uma outra condição: a transformação da vida. Para Karl Marx muitos filósofos procuraram interpretar de diferentes formas o mundo, mas o que importa, na verdade, é transformá-lo. A filosofia encontra sua razão de ser quando refletimos sobre a vida e encontramos a “arte do bem-viver”. O filosofar gera no ser humano novas atitudes, transforma seu ser e, por conseqüência, provoca modificações em seu meio social. Justamente a prática de filosofar faz com que o ser humano tenha a vontade de realmente viver. “A vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos” (John Lennon). O filosofar faz com que os planos sejam traduzidos para um viver mais consciente. Afinal, a filosofia deve nos conduzir, segundo Kant, à busca de respostas para quatro questões básicas: O que posso saber? O que posso fazer? O que me é permitido esperar? O que é o homem? A primeira questão nos responde a metafísica, a segunda a ética, a terceira a religião e a quarta a antropologia. Para Kant, as respostas das três primeiras questões são encontradas à medida que nos esforçamos em responder a última. “A filosofia é um bom senso” (Seneca).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]