professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

Talvez nunca como agora o tema do corpo tenha estado no centro das atenções humanas. A sociedade ocidental, durante longo tempo identificada com uma mentalidade dualista, que separa corpo de espírito, material de espiritual, terra de céu, manteve a questão do corpo algo exilada e silenciada. Recentemente, no entanto, o corpo voltou a ocupar o lugar que lhe corresponde: no vértice do que seja a compreensão do que significa ser humano. Somos um corpo, o corpo e nossa identidade. Quanto mais reprimirmos aquilo que se refere ao corpo, mais veremos isso que tentamos banir da perspectiva da atenção pessoal e comunitária reaparecer com vigor, reclamando seus direitos.

“Nosso corpo: nós mesmos” é o título de um livro coletivo publicado nos Estados Unidos, na década de 1970. Embora refira-se especificamente às mutações no corpo da mulher nas diversas etapas da vida, o título pode bem apontar para todo o gênero humano. Nosso corpo diz quem somos e não dar atenção a ele significa perder o rumo de nossa identidade humana mais profunda.

No entanto, a cultura em que vivemos é cheia de complexidades e, mais ainda, de ambiguidades. Em plena libertação sexual, vemos que a mesma talvez não nos tenha levado a sermos realmente mais autênticos e felizes, como seria de se esperar. A pós-modernidade em boa parte “liquefez “ os ideais e utopias que davam força aos projetos históricos individuais e coletivos. Além disso, contribuiu para uma exacerbação exponencial do consumo, instilando-o sorrateiramente dentro dos indivíduos. Assim, colocou ao alcance dos corpos, mentes e sensibilidades de hoje prazeres “outros” que não se aproximam sequer longinquamente da satisfação dos desejos e das pulsões corpóreas que compõem a rica sexualidade humana.

Os anos 1960 proclamaram sua ânsia de liberdade em todos os sentidos. Fazer amor e não a guerra era o lema dos hippies floridos que enchiam Woodstock com músicas que a nossa geração tanto cantou e parece não encantar tanto nossos filhos e netos. Na verdade, a desaparição dos modelos denunciados na revolução hippie não gerou mais liberdade e plenitude para as gerações seguintes. Pelo contrário, o legado do século XX é mais de angústia, vazio existencial e encurtamento de horizontes.

Nos dias de hoje, sentimos a sociedade doente e carente de verdadeira plenitude e satisfação. A avidez do consumo congela e paralisa nossos melhores desejos: de amor, de gratuidade, de plenitude, de contemplação. A atitude predatória da humanidade ameaça extinguir e baixar a níveis alarmantes os recursos do planeta. Toda essa situação ameaça conduzir-nos a uma autêntica “frigidez dos sentidos”, que se desvia daquilo para que foram feitos: o trabalho, o amor, o louvor. E passam a voltar-se para objetos outros, verdadeiros fetiches e ídolos menores que lhes roubam a energia e a finalidade. Comprar, gastar e consumir: esses são os verdadeiros prazeres pós-modernos.

Recente pesquisa realizada por cientistas ingleses demonstrou que comprar pode ser tão excitante e prazeroso para as mulheres quanto a atividade sexual. A pesquisa mediu a atividade de áreas do cérebro que controlam a emoção. As pessoas pesquisadas faziam uma série de atividades enquanto monitoradas. E o resultado mostrou que adquirir bens de consumo em liquidação provoca tanta excitação e prazer quanto ver imagens eróticas.

A pesquisa apresenta como uma de suas conclusões uma correlação entre picos emocionais e manifestações corpóreas de prazer e compras feitas em liquidações. O fato de o consumo provocar tais sensações catárticas quando são adquiridos objetos com desconto não atenua, e sim agrava, a nosso ver, o diagnóstico de que estamos caminhando para ser uma sociedade frígida no pior sentido da palavra.

O sexo como manifestação de amor e plenificação dos sentidos, canal por onde correm os movimentos da vida, está se tornando barato. Tão barato que pode ser equiparado à compra de um eletrônico ou um sapato ou… qualquer objeto que nos apresentem como a febre do momento. Desde que com desconto, é claro!

O corpo humano está em sério perigo. Está sendo liquidado ou vendido em suaves prestações mensais.

Para frear esse processo, seria urgente retomar a narrativa do Gênesis, primeiro livro da Bíblia, que nos diz que o que diferencia nós, humanos, dos outros seres criados, é o fato de o Criador, após nos criar do barro ter soprado em nossas narinas seu espírito vital. Somos um corpo, sim. Mas um corpo animado pelo espírito divino. Esta é nossa identidade, que jamais pode estar à venda nem ser posta em liquidação.

Autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/

Copyright 2010 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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