Nas manhãs recifenses, caminho numa alameda com feição bem provinciana, salpintada a paisagem de árvores em bom número, inclusive algumas e altas palmeiras imperiais e coqueiros, a exalar, em sua inteireza, um bonito verde, não faltando a grata presença de pardais, fogo-apagou e pombos, além de diversos bem-te-vi a espalhar o seu canto. De quando em quando, uma lavandeira solitária, em seu branco e preto, parecendo a camisa do Botafogo, dá o ar de sua graça. Ainda, o trinado estridente de pássaros que não me dou ao privilégio de distinguir o autor.

Poderia caminhar no Calçadão da Boa Viagem. Mas, me falta coragem. São seis trechos (já contei), do local onde me arrancho, a presença de duas avenidas, a me inibir, de maneira que delibero ficar por ali, contando as voltas dadas, uma a uma, como os rezadores do terço contam as suas contas, a boca fechada a produzir sinais intraduzíveis. Evidentemente que o azul do mar, ao ladodos coqueiros bem fincados na areia e no calçadão, me dariam uma visão mais metropolitana da paisagem, na sensação do infinito que só o mar produz, sobretudo naqueles, como eu, que nasceram em cidade não banhada por rio. Mesmo assim, me contento na caminhada no meio da alameda, rei solitário de um minúsculo espaço, a conversar comigo mesmo para evitar o silêncio da jornada.

Um fato, contudo, enfia na minha alameda o ranço interiorano, e, aliás, bem interiorano. É a presença de uma casa de marimbondo, sem trazer o rótulo de pertencer a mesma categoria dos Marimbondos de Fogo, de José Sarney. Está lá, no alto de um poste, descendo da lâmpada, como se um fosse uma escultura tosca, na forma de uma grande pêra, cercada, pelo que se pode ver, de marimbondos que a sobrevoam, na posição heroica de vigilantes.

Desconheço as posturas locais acerca do órgão encarregado da difícil e perigosa tarefa de excluir as casas de marimbondo da paisagem urbana de Recife. Deve ter algo a respeito. De um lado, a empresa de energiaelétrica, em cujo poste, debaixo da lâmpada, os marimbondos plantaram sua morada. De outro, o fato do poste se localizar em rua do domínio público. Daí o primeiro problema atinente à competência: seria da Prefeitura ou da Celpe a tarefa de acabar com a casa de marimbondo? Há ainda lugar para a presença do Corpo de Bombeiros, e, neste caso, um jato de água, com força, derruba a casa, e em consequência, resolve o problema.

Dúvidas jurídicas de lado, conheço um tipo de combate mais prático e mais secular, via do uso do fogo. Amarra-se um pano, encharcado de álcool, em uma vara, maior que um cabo de vassoura. Depois de aceso, aproxima-se da casa, a ação do fogo se desenvolvendo, marimbondos, coitados, sem direito a defesa, mortos uns, queimados outro tanto, foragidos poucos, a casa destruída. O mundo para eles acabou-se através do fogo, na profecia macabra que ouvia na infância. Telhado limpo. Muito fácil. No interior sergipano é assim que se procede, ainda hoje, com total eficiência, não ficando da casa senão auma pequena marca.

Por aqui, não sei. A certeza única é que, nas minhas caminhadas, o respeito, de minha parte, é grande, no levantar a cabeça toda vez que passo pelo poste onde a casa de marimbondo se localiza. Respeito e, acrescento, medo, também.

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Publicado no Diario de Pernambuco

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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