Para quem acredita em mandinga ou bruxaria, o julgamento da chamada “Lei da Ficha Limpa”, pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, atualmente composto por dez ministros, pareceu mesmo coisa feita ou mandada fazer. Cinco a cinco, batido, justo. De fato, a coisa ficou esquisita.
Com efeito, a referida lei nasceu de uma proposta elaborada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que reúne mais de 40 entidades da sociedade civil. Para se ter uma idéia, foram enviadas ao Congresso Nacional, no dia 29 de setembro de 2009, cerca de 1 milhão e 500 mil assinaturas, o que demonstra a insatisfação da população brasileira quando o assunto é corrupção na política. Daí surgiu a Lei Complementar nº 135, de 4 de Junho de 2010 (a conhecida Lei da Ficha Limpa), que altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.
Os excelentíssimos senhores ministros do STF que votaram contra a aplicação da referida Lei da Ficha Limpa ao caso concreto posto sob suas apreciações, sustentaram a alegação desfavorável à vigência imediata daquela Lei, defendendo a tese de que só poderia entrar em vigor um ano após a sua publicação, o que, segundo o entendimento da metade dos julgadores, preservaria a segurança jurídica das próximas eleições e salvaguardaria a confiança da população no Poder Judiciário, especialmente naquela Suprema Corte. Sob essa assertiva, rechaçaram com veemência o clamor das ruas e a vontade expressa em 1 milhão e 500 mil assinaturas de brasileiros indignados com a corrupção dos muitos políticos que continuam atuando na política e candidatos à reeleição de seus mandatos.
Diante da frustração e da perplexidade geral com o inusitado, porém no fundo já esperado, resultado do julgamento da Lei da Ficha Limpa, algumas entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil, através de seu presidente, Ophir Cavalcante, em reunião do Colégio de Presidentes das Seccionais daquela entidade, afirmou que: “a decisão do Supremo Tribunal Federal, de suspender a proclamação do resultado do julgamento do recurso que trata da aplicação da Lei da Ficha Limpa para essas eleições, após o empate em 5 votos a 5 entre os ministros, “é a pior das soluções possíveis”. Para Ophir, os ministros devem solucionar urgentemente o impasse antes do pleito eleitoral de 3 de outubro próximo, e não adiá-lo até o preenchimento da vaga do 11º ministro daquela Corte. “Isso seria deixar a solução da questão para as calendas gregas, gerando imensa insegurança jurídica no país.”
Todavia, para surpresa geral, o ex-governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, autor do recurso levado ao pleno do STF para ser julgado sob a égide da Lei Complementar nº 135, em razão dos flagrantes indícios de muita sujeira em sua ficha política que o conduziram à barra dos tribunais a fim de tentar a reeleição após haver renunciado para evitar sua cassação política por oito anos, o citado ex-governador, vendo-se diante de um resultado controverso e inconclusivo, renuncia mais uma vez, afastando por mais oito anos o perigo possível, mas não provável, como de fato ficou demonstrado, de ser condenado pela última instância da Justiça, o STF.
Em face do inusitado empate nos votos proferidos pelos ministros do STF, um grande sentimento de alívio deve ter experimentado o ex-candidato, enquanto uma grande frustração e enorme insegurança para a população delineou-se no horizonte político, perante o fantasma da impunidade a pairar ameaçadoramente sobre a sociedade brasileira, a qual, se não fez ecoar novamente o clamor das ruas, interrogando ao ex-governador: renunciou, por que? por que renunciou?, é, precisamente, porque o povo sabe o motivo das renúncias, tanto da primeira como da segunda, resultando claramente patenteada a culpa no cartório do ex-governador Joaquim Roriz.
E agora? “Vai ficar tudo como dantes no quartel de Abrantes?” Não será possível. Por isso, diante da atitude audaciosa e afrontosa do ex-governador para com a Justiça, a sociedade e as instituições, que se viram enxovalhadas pelo pouco caso demonstrado para com todas elas, o pleno do STF vai novamente se debruçar para definir o que já devia ter sido definido, tendo em vista o que ficou configurado em mais uma renúncia do ex-governador, embora legalmente permitida, entretanto, moralmente ilícita e condenável, vez que significa o respaldo da impunidade para os crimes de corrupção eleitoral e política, sobejamente condenados através de um milhão e quinhentas mil assinaturas contra a permanência dos políticos que os praticaram.
Poderiam os ministros do STF, ultrapassando a letra fria da lei, ter caminhado no sentido de penetrarem no espírito vivo e edificante que intrinsecamente deve conduzir a lei à realização da Justiça? Ou estão eles agrilhoados à escravidão da norma, cumprindo-a rigorosamente, mesmo em detrimento da justiça que é o fim precípuo da lei? É difícil o cidadão comum compreender essa primazia da lei em prejuízo da justiça.
Ora, é sabido que o STF é a última instância para onde acorrem os necessitados de justiça. Lá reside a última palavra a favor ou contra a esperança de justiça da sociedade. Portanto, é dali que se espera que a lei seja feita para o homem e não o contrário, o primado da lei pela lei. Assim, a lei deve existir em função das pessoas e não as pessoas em função da lei. Esse princípio foi proclamado pelo próprio Jesus Cristo ao contestar os escribas e fariseus que cumpriam a lei judaica ao pé da letra, mas descumpriam a justiça e a compaixão.
Na próxima quarta-feira, 29 de outubro, o Supremo Tribunal Federal irá se reunir, para deliberar sobre a Lei da Ficha Limpa. Segundo o presidente da OAB, “a renúncia do candidato Joaquim Roriz ao governo do Distrito Federal não significa que a missão do Supremo Tribunal Federal de julgar a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa tenha sido encerrada. Quando é admitida a repercussão geral, como ocorreu no caso da Lei da Ficha Limpa, o STF deve ir até o fim no julgamento, até para definir qual a tese jurídica a ser aplicada nos demais recursos que tratam da mesma matéria”.
Assim, em que pese a perda de objeto do recurso pela renúncia do ex-governador Joaquim Roriz a candidatar-se para as próximas eleições, o presidente da OAB afirma ainda que: “o STF tem a obrigação, enquanto guardião da Constituição, de definir qual a melhor interpretação para o caso”. E reafirma a importância da conclusão do julgamento sobre a Lei da Ficha Limpa, a fim de que seja priorizada a segurança jurídica para a sociedade para o pleito do próximo dia 03 de outubro.
Na verdade, pela renúncia, o ex-governador Joaquim Roriz, conseguiu safar-se, mais uma vez. O mesmo não ocorrendo com o STF, que, mesmo tendo ignorado o clamor das ruas, agora terá de se pronunciar definitivamente sobre a Lei da Ficha Limpa, podendo-se concluir que, por portas travessas, a famigerada renúncia terminou servindo à causa da Lei da Ficha Limpa e deixou os senhores ministros numa tremenda “saia justa”, da qual eles terão de se livrar, para continuarem honrando a toga que vestem.