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De origem ribeirinha, o que muito me orgulha, venho de família cabocla com seus costumes de fazer piracaia (assar peixe à noite as margens de rios amazônicos) nas belas praias do Tapajós, cortar seringa para coletar o látex e desfrutar de belas cuias com vinho de açaí. Ficava maravilhado ao ver meu velho pai arpoando peixe grande (pescaria feita com arpão – haste de madeira com um bico de aço lançado com força para perfurar os peixes e assim capturá-los) ou lutando na proa da canoa para dominar os tambaquis enormes que eram fisgados pelo espinhel e seus muitos anzóis.

Ainda consigo lembrar dos enormes jacarés e dos tracajás que pegávamos nas caçadas noturnas em praias santarenas nos meses de outubro e novembro. Aquilo era a forma de se viver respeitando a natureza. Pode parecer estranho, mas era uma convivência de amizade com aquilo que a natureza gentilmente nos oferecia, isso porque só tirávamos o necessário para nosso sustento.

Mas havia dias que nada tínhamos para comer. Era uma fome doída que encompridava os dias e fazia de nossas brincadeiras uma forma de esquecer o sofrimento.

As chuvas eram demoradas. Molhavam bem a terra e se estendiam por semanas no período chuvoso de nossa região. Nossa energia vinha do querosene que alimentava o fogo de nossas lamparinas. O sono chegava rápido em meio às estórias dos mais velhos que sempre exageravam no suspense, pois envolviam em seus relatos visagens e outras coisas em que acreditavam como verdade.

Desde cedo olhava meu pai habilidoso tecendo suas tarrafas, malhadeiras, tipitis, paneiros e peneiras. Sonhava com o dia que eu pudesse também fazer aquilo, mas esse dia nunca veio. Só aprendi tecer tarrafa e malhadeira. O restante será enterrado com meu velho artesão de mãos hábeis. Irá com ele parte de nossa história cabocla.

Hoje vejo reportagens mostrando ao mundo esses costumes como algo rústico, porém extraordinário. E não é mentira não. Mas aí fico imaginando e comentando com meus filhos eu vivi e sei fazer boa parte disso tudo.

Sei fazer poqueca ou moqueca de peixe. Já comi a larva do coco curuá. Já matei a fome comendo saúvas ou saúbas. Já peguei peixe e nunca o devolvi ao rio para que fosse viver mais um pouco. Já cacei porco-do-mato e outros animais silvestres. Já coletei látex e Castanha-do-Pará. Já fui rico em cultura e não sabia. E hoje o modismo é vender isso tudo para turista.

É uma pena que isso eu levarei comigo sem poder viver tais experiências com meus filhos. Concluo então que a cada amazônida que morre com ele se vai um pouco de nossa riqueza cultural. Em breve perderemos tudo e só restarão os relatos escritos para os que se interessarem em ler viajarem em imaginação por esse mundo fantástico que muitos acreditam não existir ou ter existido.

(*) Professor da Rede Pública Municipal de Santarém
Graduado Pleno em Pedagogia pela UFPA

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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