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Naquele dia, Adão chegou ao declinar da tarde. Percebiam-se em seu rosto sinais de fadiga, em seus olhos pesavam a inquietação e o temor. Eva, intrigada com a estranha demora do companheiro, tomou coragem e o interrogou: “Querido, onde você estive todo esse tempo? Por que demorou tanto para chegar?” Com palavras evasivas, meio gaguejante, Adão desculpou-se com motivos que para um habitante do Éden não pareciam dos mais convincentes. Eva resolveu não insistir e aceitou as fraquíssimas evasivas do companheiro deixando-o em paz. Adão, sem mais palavras, deitou-se de bruços sobre o tapete macio da relva e dormiu pesadamente. Eva, sentada a seu lado e nada confortada com a indiferença do companheiro pôs-se, então, a contar as costelas de Adão, para constatar se Deus não havia novamente retirado uma delas.

Viver significa interagir com nosso universo. Nesta inter-relação somos confrontados com as mais diferentes situações: busca de um emprego, diversão com os amigos, criação dos filhos, dificuldades de relacionamento, administração do lar, surgimento de uma doença, viagem de lazer, etc. Diante das mais variadas dimensões da vida somos obrigados a tomar decisões, a escolher entre alternativas, a criar soluções. Neste exercício de (re-) agir frente às situações de nosso cotidiano construímos a nossa responsabilidade. Em outras palavras, nos tornamos “pessoas responsáveis” quando desenvolvemos nossa capacidade de responder aos desafios e chances da vida. A responsabilidade se define não pelo fato de assumirmos compromissos, mas principalmente por nos tornarmos ativos diante das diferentes circunstâncias, ou seja, pela tentativa de sermos verdadeiros sujeitos de nossa história. Esta responsabilidade, a resposta à vida, é alimentada por um sentimento que nos impulsiona à ação concreta: a esperança. A verdadeira responsabilidade sempre surge da esperança e é por ela acompanhada. Pois, quem tem esperança não se conforma em esperar, mas vive ativamente a certeza de que o seu desejo já está se realizando. A esperança nos faz ter a coragem de tentar, de arriscar e através do agir construir nossa responsabilidade. Enquanto esta possui um corpo, uma materialidade, a esperança é a alma, aquilo que faz com que a responsabilidade se exteriorize. Porém, para que a esperança não nos leve à displicência, à uma ação cheia de boas intenções, porém sem verdadeiro comprometimento é necessário muitas vezes a presença de um “fantasma” que nos tire da calma anestesiante ou do entusiasmo ilusório: o temor. Este sentimento não deve ser confundido com pânico ou medo. O seu significado se aproxima muito mais da reverencia, do respeito, zelo ou escrúpulo. O temor não é um sentimento que nos impede de agir, mas sim que exige de nós uma resposta adequada, correta e que venha a melhorar a situação. É justamente o temor da responsabilidade que nos faz entender que a ética necessita pensar também no possível acontecimento do mal, talvez muito mais do que no acontecimento do bem. Mas, este temor que acompanha a responsabilidade é um sentimento justificado e não uma paralisante temeridade. Dele pode até mesmo surgir receios diante dos futuros acontecimentos, mas nunca será um amedrontamento. O temor expressa-se como uma questão primordial que exige obrigatoriamente uma resposta: o que acontecerá, caso eu não faça alguma coisa? Quanto mais nebulosa é a resposta exigida pela situação, mais clara se expressa o dever de responsabilidade, ou seja, o dever de encontrar uma solução. O temor é o sintoma da saudável consciência de sentir-se sozinho, quando se deve fazer uma determinada escolha. “Não espero socorro de Deus. Deus não existe para ficar tirando a gente de apuros” (Amyr Klink). Quem não se deixa contagiar por este santo temor, não pode ser digno de confiabilidade, pois só é possível confiar em uma pessoa capaz de assumir suas escolhas e seus atos. Por fim, viver na dialética entre esperança, temor e responsabilidade significa compreender que não basta ser bom, não basta ter iniciativas que expressam a bondade. O ânimo da esperança, mas principalmente o temor da responsabilidade, nos leva a compreender a necessidade de criarmos condições que possibilitem o bem, em outras palavras, circunstâncias, nas quais as boas ações se tornem até mesmo supérfluas.

Não basta ser livre, como afirma Bertolt Brecht, devemos nos esforçar em criar uma condição social que possa libertar a todos e que torne supérfluo o amor pela liberdade. Não basta ser racional, devemos nos esforçar em criar uma condição que convença que a irracionalidade de uma pessoa seja um mau negócio. “As pessoas felizes não acreditam em milagres” (Goethe).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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