No meu tempo de menino, não se fala em datilografia. Melhor dizendo, quando se ia a escola para estudar datilografia, não se dizia que ia aprender datilografia, mas remington. Sim, se aprendia remington, em escola de remington. A marca da máquina assumia a frente de tudo, escondendo o nome principal – datilografia. Ademais, como se fosse algo já pontuado em lei, depois dos doze para os treze anos nascia na imensa maioria o desejo de freqüentar a escola de… remington.

Justamente a frente da escola de remington estava, em termos de território de Itabaiana, a serena, elegante e plácida figura de Dona Tota, cujo porte sempre me fez teimar se cuidar de neta ou bisneta de alguma princesa africana. Na pequena população negra de Itabaiana desses tempos, nem, tampouco, na grande população branca ou misturada, ninguém, absolutamente ninguém, apresentava uma fisionomia tão nobre como a de Dona Tota. É como se a linhagem dos gestos fosse tangida pelo sangue e se revelasse de forma tão notória.

Fui seu aluno. Freqüentei suas aulas. Aprendi o toque das letras em suas máquinas, enormes e pesadas, os dedos, sobretudo o mindinho, encontrando dificuldade em clicar, tal o peso das teclas, mas, me mantendo dentro do figurino, dedo aqui, dedo ali, sem olhar para as teclas, cabeça erguida, bum-bum encostado na cadeira, como um lorde inglês. Dona Tota por perto, apreciando, ensinando, corrigindo, portando três ou quatro máquinas, todas, absolutamente todas, do tempo do cuspe, ou então, nos bons momentos, a contar suas proezas como tocadora de violão em tempos medievos.

Todos de minha geração, que aprenderam datilografia, o fizeram com Dona Tota. Antes e depois de mim, até período que já não posso precisar. A gente saia de casa com duas ou três folhas de papel, para ir a escola de Dona Tota, no primeiro trecho do Beco Novo. Era até uma proeza exibir, na praça ou nos bares lindeiros, as folhas, com as letras impressas, repetidas e repetidas, enchendo o papel. Aprender datilografia, digo, aprender remington, fazia parte da educação de todos, sobretudo quando, à época, um dos melhores empregos, do Banco do Brasil, exigia prova de datilografia.

Muitos anos [anos, não, décadas] depois, precisei conversar com Dona Tota. Sabia estar em Aracaju, envelhecida e doente, na casa de um dedicado sobrinho. Foi a esposa deste que atendeu a meu telefonema. Manifestei meu desejo de falar com Dona Tota. Era impossível. Dona Tota tinha falecido e eu, inocentemente, não sabia. Liguei, de imediato, para Itabaiana. Ninguém podia morrer em Itabaiana para minha mãe não me comunicar. A gente, que nasce no interior, nunca se desliga, nem deve, de suas raízes, na curiosidade de saber o nome dos que se vão. Reclamei que Dona Tota tinha morrido, sem que eu tivesse recebido a notícia. Mamãe respondeu que Tota morreu em Aracaju, ou seja, o compromisso dela era só me informar os que faleciam em Itabaiana. Tão lógico.

De Dona Tota guardo várias fotos, em épocas diferentes, e fotos dos alunos, com bonitas dedicatórias, trajando a capa de formatura, com o diploma, expedido por ela, na mão, acervo que materializa uma época em que dominar a arte da datilografia era uma necessidade para vencer o futuro e ser gente na vida. Contudo, mais forte que as fotos, guardo a imagem de uma princesa negra, cabelo bem arrumado, impecavelmente elegante em suas roupas simples, a viver, na rua do Beco Novo, onde explorou, por anos e anos, como uma das pioneiras, uma escola de datilografia. Não foi a primeira que Itabaiana teve. Foi a segunda, salvo engano. Minha mãe, hoje, sem falar, vítima de um derrame, não pode mais depor a respeito. Mas dela, ouvi que Dona Tota foi quem prosseguiu na primeira escola implantada.

Dona Tota não conheceu a máquina elétrica, como não deve ter conhecido a máquina de margarida, nem a máquina eletrônica. O computador, nem pensar. Seus conhecimentos se limitavam a velha máquina de escrever, da qual, aliás, dominava de ponta a ponta. As diversas gerações de itabaianenses – entre as quais, incluo a minha – muito lhe deve, na matéria. Eu, de minha parte, um entusiasta do computador (será que inventarão algo mais avançado?), não canso de, sempre e sempre, está a me lembrar de seus ensinamentos, pela honra que tive de, também, ter sido seu aluno

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Publicado no Correio de Sergipe

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