No início, Recife era apenas uma cidade, na tarefa que inventávamos de estar a procurar no mapa determinados nomes. Depois, tocador medíocre de trompete de quarta mão, da banda de Itabaiana, passei a ver Recife pelos sons de Vassourinha e Evocação, que, sofrivelmente, cheguei a soprar. Do primeiro, a lembrança sempre grata de Antonio Melo, mestre e maestro, imbatível no sax, na parte mais rápida. Inigualável. Recife também era a cidade onde o seminário maior atraía a figura de Zé de Bigodinho, que, no final do ano, de férias, nos encantava com seu papo sobre dom Helder.

Bom, o tempo passou, e, de repente, no concurso para juiz federal, no meio das três opções que teria de declinar, em nível de capital, aponto Aracaju, evidentemente, como primeira alternativa, seguindo-se de Maceió e… João Pessoa. Pulo Recife, cidade grande, aliás, muito grande para tabaréu como eu, acostumado à mansidão e monotonia da cidade pequena.

Não chegou para meu bico nenhuma das três. Fui parar em Teresina, calor danado para a reclamação do alienígena, a depressão quando alguém me dizia que fora passar umas semanas e, nessa brincadeira, já contava vinte anos por ali. E tinha mais: só me perguntavam se eu era cearense ou pernambucano. E sergipano, por acaso, não poderia também se deslocar para Teresina?

Depois, depois, já aquartelado em Aracaju, Recife me volta à tona, com a instalação do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Finco o pé no chão: para Recife não vou. Não me candidatei para a composição primeva, porque, aliás, novo ainda na magistratura federal, não teria espaço para fazer parte do primeiro rol de seus julgadores. Fiquei mornando na lista de antiguidade, esperando os mais antigos desocuparem o lugar, a conversa rápida e constante de não aceitar promoção, Recife não estava nos meus planos, na acomodação dos que não querem sair da sombra para não ser tocado pelo forte sol.

Tivesse ficado de boca fechada teria sido melhor. Depois de quase vinte anos de uma ladainha só, não vou, não aceito, vou recusar etc. e etc., a notícia me chega em maio que a minha vaga – esclareço, eu já na condição de decano do primeiro grau – surgiria em novembro. O relâmpago mais potente me atinge a cabeça. O segundo grau à minha frente, a desafiar meu comodismo. Ah, os quase vinte anos de conversa fiada foram para a caixa-prego. Os meus olhos brilharam. Aceitei. Dois anos e quatro meses em Recife, na contagem dos meses.

Pois sim. Desse tempo, de segundo grau na magistratura, e de cidade nova, na vivência semanal, me quedo embaciado pela paisagem que o trajeto para a sede do Tribunal me proporciona, sobretudo quando, da Av. Dr. Antonio de Gois (é esse mesmo o nome?), um pouco antes da ponte, em direção ao Recife Antigo, me deparo com o Rio Capiberibe, manso, uniforme, coberto por um lençol azulado, barcos de pesca parados e outros marcando de suor a luta do pescador pelo peixe de todo o dia. Do gabinete, o outro lado do rio, também os barcos de pesca, que um dia,prometo a mim mesmo, vou tirar folga para fotografá-los em diversos ângulos. E, a frente e no caminho, a paisagem lisboeta do Recife Antigo, por onde Tobias Barreto muito deve ter passado.

Não é o caso de repetir a célebre frase de César, mas, acobertado pela camisa do Sport, do Santa Cruz e do Náutico, ter a coragem de admitir que não foi um amor à primeira vista, mas diário e lento, a ponto de, hoje, poder dizer, bem alto: vim, vi e estou gostando.

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Publicado no Diario de Pernambuco

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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