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Se depois que um homem morre, há quem ainda sinta a necessidade de atacar a sua obra e desqualificar o seu pensamento, é porque, sem dúvida, aquele pensador, mesmo fisicamente morto, continua a incomodar. Suas palavras ressoam como um apelo profético para uma transformação que nem todos aceitam ou desejam.
José Saramago era um escritor engajado que, em seus romances, refletia uma profunda crítica à sociedade vigente e o anseio por um mundo diferente. Uma vez, no 5º Fórum Social Mundial, o encontrei em um debate aberto com o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Este defendia a utopia como ideal necessário para que o ser humano possa avançar no caminho. Saramago denunciava a utopia como um ideal que nos afastaria da realidade. Naquela discussão, me senti intelectualmente mais próximo de Eduardo Galeano do que de Saramago. Entretanto, admirei a profunda sinceridade e coerência do intelectual português, único escritor em nossa língua a receber o Nobel de literatura e que durante toda a sua vida nunca escondeu sua opção socialista.
Seu livro “Ensaio sobre a Cegueira”, transformado em filme pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles, continua a ser uma incômoda profecia sobre a epidemia social que se abateu sobre o mundo atual e teima em nos desumanizar. É pior do que uma cegueira física para a qual se poderia encontrar antídotos. Ela faz com que, mesmo pessoas boas e sensíveis, não vejam, isto é, não se dêem conta da terrível realidade em que vivemos. Conforme Bernardo Kleisberg, assessor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), todos os anos, 18 milhões de pessoas continuam morrendo por causas relacionadas com a pobreza injusta, imposta pelo modo como esta sociedade se organiza. Parece que os dados de 2009 ainda não foram divulgados, mas em 2008, o mundo comemorou sua segunda maior safra da história. Apesar disso, nesse ano, cinco milhões de crianças morreram de fome. Como escreveu Saramago, a sociedade continua “cega”.
Infelizmente, não é só a sociedade e a organização econômica internacional que contraiu esta enfermidade espiritual. Até muitos setores das Igrejas e das religiões têm estruturalmente sido coniventes com esta idolatria do deus-mercado.
Saramago se proclamava ateu. Sempre atacou a idéia que aprendeu sobre Deus. Em 1991, escreveu o “Evangelho segundo Jesus Cristo”. Em um estilo próprio, com páginas inteiras sem parágrafos e com uma pontuação muito original, Saramago reconta criticamente as histórias narradas pelos evangelhos e algumas que ele deduz das entrelinhas. Apresenta Jesus de Nazaré como simples pessoa humana. Isso desagradou às hierarquias eclesiásticas, embora tenha respondido aos anseios de muitos fiéis que, assim, descobriram Jesus mais próximo de nossa fragilidade e mais acessível para ser seguido, como mestre e guia no caminho do Pai. Agora, já idoso e próximo à sua partida, presenteou o mundo com o romance Caim. Nas primeiras páginas, o julguei fundamentalista e primário. No entanto, pouco a pouco, compreendi a parábola que ele nos propunha. Era contra a visão fundamentalista de um Deus vingativo, violento e ciumento do progresso humano. Finalizei a leitura mais animado a testemunhar Deus como amor e inclusão, neste mundo carente de diálogo e de respeito à diversidade.
Saramago nunca precisou ser crente para ser uma pessoa sedenta de fraternidade e justiça. Com todo o respeito por sua crítica muitas vezes ácida a Deus e às religiões, ouso imaginar Saramago chegando ao céu e se surpreendendo com o sorriso de Deus que o acolhe como amigo. A ele meio envergonhado, sem compreender esta inesperada amizade, quem sabe, Deus tenha dito as mesmas palavras pronunciadas no século XVI pelo reformador Martinho Lutero: “Deus prefere o ataque, mesmo blasfemo de uma pessoa justa, do que o louvor e o aleluia de quem não se preocupa com a justiça”.
(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.