Padre Beto 14 de junho de 2010

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Em uma das ruas mais movimentadas da cidade encontrava-se um homem idoso e deficiente físico. Sentado na calçada, o velho permanecia com a mão estendida procurando chamar a atenção dos transeuntes e receber alguns trocados. A maioria das pessoas, porém, parecia não perceber sua presença, outras sem mesmo olharem para o velho rapidamente jogavam em suas mãos moedinhas que provavelmente eram um incômodo em seus bolsos. Na verdade, o velho parecia pertencer tanto à paisagem daquela rua metropolitana que suas tentativas de atrair a atenção das pessoas simplesmente não funcionavam mais. Afinal, tanto freqüência como a quantidade possui um efeito anestesiante e faz com que nos acostumemos com qualquer situação. Em um determinado momento, uma jovem sentou-se na calçada ao lado do velho e lhe disse: “Eu gostaria muito de lhe dar alguma coisa, mas eu acabei de constatar que não tenho nenhum centavo se quer no bolso!” O velho ficou alguns instantes em silêncio. Depois, com aquela simpatia que somente a velhice oferece ao ser humano, respondeu: “Você acabou de me dar muito mais do que um centavo. Isso eu não tenho há um bom tempo, nem em casa e muito menos na rua!”

A ética não se confunde com a moral. Enquanto a segunda se constitui em um conjunto de regras que regulamentam a vida humana, a primeira é um exercício de reflexão sobre o comportamento e relações dos seres humanos. Nós formamos uma determinada visão ética quando pensamos sobre relacionamentos humanos julgando-os na perspectiva do bem e do mal. Nós somos éticos quando nos encontramos em coerência com esta visão. A ética, porém, só se torna útil para o ser humano quando possui um único objetivo: a melhoria da qualidade de vida. Buscar o bem no sentido ético da palavra significa criar condições para que a vida se mantenha e se desenvolva. O mal se define eticamente como toda forma de aniquilação da vida. Neste sentido, todas as relações humanas passam a ter um valor positivo para a ética, quando estas, sejam elas em sua dimensão material ou espiritual, contribuem para o desenvolvimento da vida. Ao contrário, quando as relações humanas passam a ser um obstáculo para a vida ou uma forma de sua destruição, estas relações tornam-se condenáveis pela ética. Portanto, para que o meu pensamento sobre relações humanas se torne verdadeiramente ético é necessário que eu tenha a sensibilidade de assumir todo o desejo de vida como se fosse o meu próprio. Esta exigência básica do pensamento ético significa um aprofundamento e expansão de nossa visão subjetiva do mundo, a superação de nossas definições próprias do bom e do ruim. A ética se caracteriza, principalmente, pela responsabilidade diante da vida humana e, por conseqüência, diante de todo ser vivente. Para isso é necessário o esforço em compreender a visão de mundo dos outros e suas definições sobre o bom e o ruim. Ao pensamento ético pertence, em outras palavras, um grau de compaixão, uma capacidade de “sentir com outro suas paixões”, seus sofrimentos, suas alegrias, dúvidas e incertezas. A verdadeira reflexão ética surge não somente da insatisfação com nossos relacionamentos, mas também da incapacidade de suportar o sofrimento do outro. Esta incapacidade faz com que o nosso bem-estar pessoal esteja intimamente ligado ao bem-estar dos outros. Ter compaixão significa levar em consideração os sentimentos alheios, ou seja, ter a capacidade de colocar-se na situação do outro.

É necessário compreender, porém, que compaixão não se confunde de forma alguma com o sentimento de dó. Sentir dó de uma pessoa não é o mesmo que ter compaixão. O dó nos coloca acima da outra pessoa enquanto que a compaixão nos iguala a ela. Sentir dó de uma pessoa é rebaixá-la a uma situação de indignidade, de incapacidade. O sentimento de dó é sinal de comiseração, ou seja, de condenação ao estado de miséria, sem a aceitação da capacidade do outro de recuperação, de resgate da dignidade. A compaixão, por sua vez, aproxima-se da solidariedade. Eu me coloco na situação do outro por inteiro, não somente procurando sentir sua miséria, mas aceitando-o como alguém capaz de transformação. O dó é um sentimento que se manifesta sem esforço algum e não nos leva a nenhum compromisso. “Esta covardia mole e tímida que não deixa nem ver, nem seguir a verdade” (Blaise Pascal). A compaixão, por sua vez, deve ser um exercício diário e nos envolve com a vida do outro. Exercitar a compaixão é o mesmo que se libertar de uma visão consumível da violência e do sofrimento, tão comum na sociedade atual, e compreender que o mundo pode ser experimentado através de perspectivas diferentes. Acima de tudo, a compaixão significa o reconhecimento da pessoa humana como um valor essencial. Neste valor encontramos o início de todo pensamento ético. “Os homens são como os livros: é necessário tomá-los pelo seu valor e não pelo seu aspecto” (Joubert).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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