Paulo Rebêlo 28 de junho de 2010

(www.rebelo.org)

Da mesma forma que os homens nunca vão entender certos mistérios femininos  — como a TPM, a religião do ‘sempre me atraso em compromissos’ e a filosofia do ‘que roupa eu vou?’ — as mulheres talvez nunca compreendam a magia que o futebol proporciona ao ego masculino.

Por mais perna-de-pau que seja, todo macho já foi boleiro um dia, nem que tenha sido na infância. Até chegar o dia em que ele acorda e percebe: por mais esdrúxulo que possa parecer, existe vida (e contas para pagar) fora dos campinhos de barro. Restam apenas as lembranças daquela gordinha, branquinha, fofinha e desejada, até mesmo na lama. A entidade bola.

Como o assunto é misturar futebol com naftalina, nada mais conveniente do que lembrar aqueles tempos de maloqueiro quando terrenos baldios eram Maracanãs e a glória era matar aula por causa de uma peladinha. A secura infanto-juvenil pela bola desconhece limites. Contraria os preceitos da Física, debocha das leis (pai e mãe) e é uma verdadeira escola superior para qualquer pretendente a MST.

Não existe cansaço, não existe falta de fôlego ou estiramento muscular, contusão, nada. Tudo gira ao redor da redonda, aquela deusa com o dom de se transformar nas mais estranhas formas.

Uma meia cheia de papel amassado, uma latinha de refrigerante, uma tampa de garrafa, uma pedra arredondada, uma lata de leite Ninho, um pedaço de giz ou uma bola de gude do tipo carambola ou ferrança. Claro, sem esquecer o par de chinelos para fazer a barra. A pelada só termina através de medidas provisórias como, por exemplo: bola furada; chutão para o outro lado do muro; chegada do dono da casa onde a turma está jogando no quintal invadido; porrada dos PMs ou tiro de soca-soca no pé da bunda.

Matar aula para jogar bola nunca foi falta de ética. Pelo contrário. Era um desafio que visava, acima de tudo, autenticar a veneração pela deusa redonda, o sumo exercício da religião boleira.

Quando não havia condições de matar aula, o jeito era ficar até horas mais tarde nos pátios do colégio, para desespero das diretoras e dos boleiros do outro turno que, da janela da sala de aula, subiam pelas paredes porque estavam tendo aulas com as mocréias de matemática quando poderiam estar jogando e, quem sabe, cavando uma profissão mais decente do que escrever…

Quem nunca pulou um muro ou invadiu um quintal de casa abandonada por causa de uma pelada? Nos casos mais inusitados, o dono do terreno chamava a polícia e o circo estava armado. Mas tudo era fácil. Difícil depois era explicar os tiros na poupança para a delegada de plantão, também conhecida pelo codinome ‘mãe’.

E a bola? Por mais idolatrada que ela fosse, na maioria das peladas era ela que sempre deixava de aparecer. Na época em que ainda se podia chamar um garoto de maloqueiro sem cair no sentido pejorativo, a bola era um artefato caro para o salário (mesadas) dos boleiros. Até porque a molecada gastava tudo em xaxá, zorro, jujuba e raspa-raspa. Aquela cotinha que todo mês se combinava, para comprar uma bola decente, nunca dava certo. Vai ver era a falta de concentração nas aulas de matemática.

Quando um dos moleques ganhava uma bola de presente e levava para o “campo”, a festa era total. Talvez fosse inconsciente, ou não, mas o dono da bola terminava se tornando o café-com-leite do jogo. Ninguém chegava perto para fazer falta e, na hora em que ele queria ir embora, todos se juntavam e diziam em coro: “pôxa, mas você é nosso melhor jogador, se for embora o time vai ficar desfalcado…”. E geralmente era o mais pé-troncho.

Em todo timinho de quintal que se preze, há sempre o pé-troncho; popularmente conhecido como perna-de-pau, é aquele cidadão que nasceu com todos os dons e aptidões possíveis, menos o de boleiro. Este que vos escreve foi o presidente da associação dos pernas-de-pau do colégio, mas nunca perdia de matar uma aula pela pelada.

Evidente que, vez por outra, um perna-de-pau chutava a bola nova por cima do muro. Era o adeus à pelada e o adeus à amizade com o dono da redonda — ao menos pelas próximas duas ou três semanas, o tempo necessário para que uma outra rechonchuda conciliasse o bom humor entre os dois.

Hoje não existem mais boleiros infanto-juvenis nas capitais, somente na periferia ou no interior. Os maloqueiros de hoje não podem mais sair de casa para jogar bola na rua, pois a lei (mãe) não permite: é perigoso, tem assalto, seqüestro-relâmpago, bêbado, carro desgovernado… os maloqueiros juvenis agora são hi-tech, preferem o Fifa 2002 no computador.

E hoje, aquele cara que tem emprego, contas para pagar e mulher para administrar, não pode mais jogar bola, nem nos tediosos domingões: se for para a pelada da rua, fica sem a pelada de casa por uma semana. É um troca injusta. Com a bola.

No eixo Rio/São Paulo, muitos colégios já começaram a usar uma espécie de areia sintética, antialérgica, de cor azul. Qual é a graça de jogar bola sem areia entrando no olho, passar o resto da aula se coçando, e chegar em casa feito bicho? Não tem graça nenhuma, pode perguntar aos pimpolhos.

Mas talvez as coisas não tenham mudado tanto assim, eu estou equivocado. Continuamos a pular muros, invadir terrenos alheios e a passar por cima das leis sociais e da ética por causa de uma boa pelada. A única diferença é que a pelada agora tem boca e pernas.

(24.05.2002)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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