PARTE II: A QUESTÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL
A questão da reserva do possível, em outros termos, toma forma na pergunta de se o princípio da dignidade humana (CR, art. 1º, III) – notabilizado pela demanda social – pode ser limitado pela escassez de recursos econômicos do Estado. Primeiramente, é de bom alvitre destacar que não há princípios absolutos, que não encontrem situação fática em que tenham de ser mitigados em favor de outros valores. O princípio da dignidade da pessoa humana, muitas vezes tomado como foco nevrálgico da Constituição da República, “é o fim supremo de todo direito; logo, expande os seus efeitos nos mais distintos domínios normativos para fundamentar toda e qualquer interpretação” (Silva Neto, 2005, p. 21), gozando de posição destacada no rol dos princípios por ser o elo entre o direito e seu predicativo de fundamentalidade, mas, apesar de toda a sua importância, não há de se sobrepor no plano fático a uma situação de real impossibilidade, como a que decorre da honesta limitação de recursos estatais disponíveis.
Conclui-se, assim, que a reserva do possível não se opõe à necessidade de satisfação dos anseios sociais no plano teórico, mas demonstra, por ouro lado, que o Estado não pode ser compelido a fazer o impossível. Dessa forma, mantidos os honestos limites da impossibilidade, o fomento à inclusão social não será atingido por um Estado que não gasta mais do que pode, pois dele o contrário seria inexigível. É dizer, em outras palavras, que a escassez de recursos deve ser real (honesta), não bastando para caracterizá-la a simples constatação de que não há previsão orçamentária para investimento social.
Mesmo havendo escassez honesta, pensa-se, contudo, que apenas no caso de retrocesso social, em que o Estado brasileiro abriria mão de conquistas sociais já atingidas, é que a justificação da reserva do possível não prosperaria. As conquistas sociais têm efeito de catraca (Effet Cliquet), não podendo retroceder, conforme defendeu o português Canotilho na primeira edição de sua obra, apesar de este autor, em virtude da posterior evolução de Portugal no campo social, ter relativizado a sua opinião já no prefácio à segunda edição, em que declarou a morte da Constituição Dirigente, assim como em outras edições e em obras mais recentes (Canotilho, 2001; 2002). Fato é que o Brasil de hoje se assemelha a um Portugal desestruturado socialmente, em que ainda não estava sob a égide do Direito Comunitário, de maneira que se pode afirmar que, tecnicamente falando, caso se verifique retrocesso estatal nas conquistas sociais brasileiras, estar-se-á diante de gritante inconstitucionalidade, mormente por ferir de morte as normas constitucionais de eficácia limitada e princípio programático, na definição de José Afonso da Silva (1998).
(*) Tassos Lycurgo é Professor Adjunto da UFRN e Advogado (OAB/RN); É Doutor em Estudos Educacionais – Lógica (UFRN), com pós-doutorado em Sociologia Jurídica (UFPB); Mestre em Filosofia Analítica (University of Sussex, Reino Unido); Graduado em Direito (URCA) e em Filosofia (UFRN). Atualmente, leciona as disciplinas Direito Processual do Trabalho e Elementos de Direito Autoral e Legislação Social na UFRN. Página Acadêmica: http://www.lycurgo.org/
Obs: A PARTE III será postada no próximo dia 22.