PARTE IV: DEMOCRACIA PLENA

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Um Estado não pode ser considerado democrático caso não desenvolva mecanismos assecuratórios do exercício pleno da cidadania, ou seja, caso não execute, no plano fático, reais condições para a concreta efetividade da inclusão social. É dizer que a democracia não pode ser analisada no âmbito estritamente teórico, abstrato, em que não se toma o ser humano enquanto pessoa, pois “sem levar em consideração as ‘condições’ e a situação em que a democracia nasce e se desenvolve, dificilmente poderíamos refletir sobre o tipo de regime sócio-político que vem se construindo nos países da América Latina nestes últimos anos” (Vitulo, 2006, p. 355), configurando, portanto, desonestidade intelectual atribuir o caráter de democrático a um país cujo regime sociopolítico não se desenvolve em termos condizentes com a própria democracia.

O caso brasileiro é sintomático: aqui, há um bloco de legislação social relativamente desenvolvido – mesmo se analisado em termos mundiais –, mas, paradoxalmente, encontram-se as mais perversas formas de exploração da mão-de-obra trabalhadora, a exemplo do labor exercido em condições análogas a de escravo, do efetuado por trabalho infantil (da criança e do adolescente) ou por meio do desvirtuamento das relações empregatícias, mormente pela presença do denominado trabalho intermediado. Neste país, infelizmente, é forçoso admitir que, “apesar da profusão na previsão de direitos que visam à proteção dentro do ambiente de trabalho, a realidade é que não conseguimos garantir vida digna aos trabalhadores, principais vítimas de crise que tem amplitude mundial” (Brito Filho, 2004, p. 125).

Talvez com esta providência, qual seja, a de levar às últimas conseqüências a idéia de que não há democracia sem cidadania social, o Estado brasileiro, que se autodenomina democrático em sua própria Constituição (CR, art. 1º), venha a se sentir desconfortável no ambiente da comunidade internacional, pois seria pelos seus cidadãos acusado de que é democrático apenas nominalmente, não o sendo, portanto, na realidade. Esta reformulação radical quanto à maneira pela qual tradicionalmente a democracia vem sendo compreendida, juridicamente falando, não necessita de quaisquer emendas ao texto da Carta Maior, senão de que ele passe pelo processo informal da mutação constitucional.

Conforme demonstrado com mais detalhes em outra oportunidade (Lycurgo, 2006), o conceito de democracia é o vetor resultante de muitos significados que a tal termo têm sido oferecidos no transcorrer da história do pensamento humano. O burburinho vislumbrado na história, nada obstante, há de encontrar algum limitador no que diz respeito aos conceitos juridicamente relevantes, dos quais se pode destacar o que diz que o regime democrático se dá por “aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões do governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto, a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo de todo poder legítimo” (Bonavides, 1996, p. 17). Nada mais é, em outras palavras, senão a vontade do Estado, segundo a qual “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (…)” (CR, art. 1º, parágrafo único).

Finalmente, tem-se aqui o elemento necessário para que se argumente que democracia sem cidadania social não se enquadra no próprio conceito jurídico do termo, pois “todas as (…) situações de privilégio, desigualdade e discriminação tendem à imutabilidade, eternizando as mais graves injustiças sociais ou fazendo do homem, para sempre, um ente (…) sem voz para o protesto e sem arma para o combate; (…) súdito e não cidadão” (Bonavides, 1996, p. 19-20). Assim, onde se verifica efetividade de direitos sociais, inexistindo, portanto, inclusão social, o ser humano não haverá de ser considerado cidadão, em absoluto desacordo com o que preconiza o supracitado parágrafo único do art. 1º da Constituição da República. Por fim, não se pode esquecer que, dada a devida força normativa à Constituição da República, interpretação da democracia que coloque à margem de seu conceito a inclusão social ferirá de morte o referido artigo da Lei Maior, sendo, por conseqüência, gritantemente inconstitucional.

Viu-se, até este ponto, que a necessidade de implementação da inclusão social pelo Estado, não apenas é condição para que ele seja considerado democrático, como também é um mandamento constitucional para que efetivamente promova tal implementação. Resta analisar, por último, quais seriam as estratégias mais adequadas para que o Brasil pudesse ingressar pelo caminho de sua plena democratização, ou seja, pelo caminho da máxima efetivação da cidadania plena, mormente a cidadania social. Pensa-se que há três pilares principais para se atingir tal fim: implementação de políticas públicas de incentivo à educação social, fomento de uma cultura política de respeito irrestrito aos direitos humanos e, por último, promoção da justiça social, principalmente por intermédio da valorização da Justiça do Trabalho e do Parquet Laboral. Veja-se que não é objetivo deste artigo a pormenorização de cada um desses temas, o que não o desobriga, contudo, de tecer breves e introdutórias linhas sobre cada um deles. É o que se tentará fazer agora.

(*) Tassos Lycurgo é Professor Adjunto da UFRN e Advogado (OAB/RN); É Doutor em Estudos Educacionais – Lógica (UFRN), com pós-doutorado em Sociologia Jurídica (UFPB); Mestre em Filosofia Analítica (University of Sussex, Reino Unido); Graduado em Direito (URCA) e em Filosofia (UFRN). Atualmente, leciona as disciplinas Direito Processual do Trabalho e Elementos de Direito Autoral e Legislação Social na UFRN. Página Acadêmica: www.lycurgo.org

Obs: As referências bibliográficas estão na versão completa do artigo, disponível no site do autor.


 A Parte V será postada no próximo dia 06 de julho

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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