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Durante a maré cheia, duas ostras se encontraram por acaso. “Eu estou muito estranha!”, revelou uma delas. “Eu sinto no meu interior algo que me incomoda. É como se eu carregasse uma pedra ou uma bola de chumbo em meu corpo. O que será que pode acontecer comigo?” A outra ostra, porém, se gabava de ser perfeita: “Comigo está tudo bem. Eu me sinto totalmente saudável, não tenho nenhum desconforto e nada que vem do meu interior é um incômodo. Eu sou totalmente normal! Mas, você deve tomar cuidado, pois ainda vai morrer por causa desta bola de chumbo!” Um siri muito esperto e com muita experiência de vida passava por perto e, ao ouvir a conversa das colegas, resolveu se intrometer dizendo à ostra orgulhosa: “Certamente, você não conhece sua própria natureza! Você não sente nada porque ainda é estéril. Sua amiga, porém, sofre com seu interior, pois carrega em si uma linda pérola!”

A princípio, a palavra grega “sophrosyne” pode ser traduzida para o português como reflexão, meditação ou introspecção. Os antigos gregos, porém, utilizavam esta expressão em um sentido mais profundo. Sophrosyne não se reduzia a um simples pensar sobre coisas, fenômenos ou situações, mas em um exercitar a razão em busca de um equilíbrio de todo o ser, em busca da utilização correta de todas as forças existentes na alma humana. Os gregos procuravam alcançar o controle ideal sobre seus afetos, paixões, inclinações, enfim, sobre todas as forças que surgiam em seu interior. O controle aqui não significava de forma alguma uma espécie de repressão, poda ou censura dos impulsos naturais, como se estes fossem um mal em si. As paixões, os afetos, as inclinações humanas eram compreendidas como manifestações interiores de tudo o que há de mais natural no ser humano. Em uma expressão moderna, as paixões, afetos, instintos e inclinações são forças, a princípio obscuras, que no ser humano se encontram e do inconsciente afloram para uma realidade consciente. Estas manifestações são então julgadas pela razão consciente e ao se manifestarem em um mundo moral não são indiferentes aos valores. Elas, porém, são, a princípio, moralmente indiferentes, ou seja, estão fora dos padrões do bem e do mal. Estas forças interiores formam, construindo ou destruindo, um fortíssimo material tanto em intensidade como em conteúdo, um mundo interior tão rico, interessante e fantástico como o mundo exterior. “Não sei conceber o bem se reprimo os prazeres da mesa, se reprimo os prazeres da luxúria e da audição e se me privo das agradáveis emoções causadas pela visão de belas formas” (Epicuro).

Paralelamente a esta visão sobre a natureza humana, desenvolveu-se desde a antiguidade uma concepção negativa do homem e com ela teorias moralistas que pregam o quanto são maus, perigosas e destrutivas as nossas forças instintivas. Deste medo diante do “animal” que existe em seu interior, o homem desenvolveu práticas ascéticas de poda e destruição de suas paixões. A ascese como caminho de purificação e aproximação de Deus foi absorvida pelo Cristianismo inicialmente nos mosteiros se generalizando na Idade Média como prática do verdadeiro cristão. Uma triste moral marcou, então, o continente europeu cristão com uma visão negativa do mundo e do homem distanciando-se da mensagem otimista e libertadora de Jesus Cristo. O ser humano era compreendido como escravo de uma natureza pecaminosa possuindo como único caminho de salvação o sofrimento e a privação de todo o prazer existente na vida. Muitas pessoas, com um medo consciente ou inconsciente de sua própria natureza acabam, mesmo nos dias de hoje, se refugiando em uma religiosidade rígida e castradora criando para si um Deus que condena a própria natureza que criou. Estas pessoas trilham, na verdade, um caminho de frustração e não chegam compreender a mensagem de Jesus Cristo.

Com a influência destas visões negativas sobre o mundo e o ser humano, por muito tempo deixou-se de compreender que os afetos e todo o prazer que a natureza humana busca pertencem à raiz da vida emocional, a impulsos da alma, materiais que, na verdade, mantém a vida humana e a base do seu desenvolvimento em busca da plenitude. Ao simplesmente reprimirmos nossos desejos e nossa força interior acabamos por anular nossa própria vida. Aqui está a pobreza ética da ascese. Do nada, ou seja, da anulação de nossa personalidade não podemos desenvolver nenhum valor. Para toda construção interior o mundo dos afetos é o terreno fértil e promissor. Tudo que possuímos em nosso ser constitui-se em um material que podemos trabalhar e moldar para a nossa felicidade e harmonia com os outros e com o mundo. “Depois de algum tempo você… aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva, mas isso não lhe dá o direito de ser cruel” (W. Shakespeare). Muito mais útil do que a repressão estóica e a obediência cega a normas moralistas é a sabedoria de interagirmos com todos os aspectos de nosso ser utilizando todo ele para a realização do sentido da vida. “Se desejares encontrar prazer na vida, deves atribuir valor ao mundo” (Goethe).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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