Dona Carolina Almeida não concebia a idéia de uma pessoa falar de São Paulo e ser ouvida em Itabaiana, através de um aparelho chamado rádio, que Zeca Mesquita, morando adiante, depois do Canto Escuro, tinha instalado na sala da frente de sua casa. Os casais passavam, no domingo à tarde, a fim de ouvir o rádio, invenção nova, que atraía à curiosidade de todos. Dona Carolina Almeida, da sua porta, bravejava que aquilo era mentira, Zeca Mesquita escondia homens miúdos no aparelho para que o povo besta pensasse que o som vinha de São Paulo, onde já se viu, meu Deus, tamanha inocência do povo de Itabaiana?!

Esse fato me foi relatado por seu Joãozinho Retratista, um dos grandes guardiões da nossa memória.

Já de minha mãe ouvi que, na década de quarenta, no encerramento de uma procissão, um fotógrafo, de Aracaju, armou a máquina, na porta da Igreja, para pegar o padre e os fiéis ao lado do andor de Santo Antonio, devidamente assentado em lugar seguro, a fim de evitar qualquer movimento. Todos se arrumaram em frente ao andor. De repente, à explosão e a fumaça do flash e o susto que os presentes sofreram. No local só ficou o santo, porque era de gesso. As pessoas, que viram e ouviram, correram. As que não viram, mas observaram a corrida dos outros, também bateram perna, deixando o santo sozinho no andor, que ele, por certo, saberia se defender. E aí mamãe concluía que, uma senhora, da Matiapoan, no desespero da carreira dada, só quando chegou nas imediações do Tanque do Povo observou ter perdido o dedo maior do pé direito.

Verdade? E eu tinha lá autoridade para duvidar da história que minha mãe contava?!

Dela também escutei que o primeiro veículo que chegou a Ribeiropólis, então povoado de Itabaiana, com o bonito nome de Saco do Ribeiro, foi levado por Zeca Mesquita, que, aliás, foi um pioneiro em diversos setores, é bom registrar. Dia de segunda, a pequena feira em movimento, quando o veículo, veículo, não, uma fobica, entrou, se balançando toda no chão bruto, parecendo um ganso, o motor gemendo um rom-rom insistente e repetitivo, fumaça pelo cano de descarga suficiente para apavorar a população local. Todos pararam para ver? Em absoluto. Todos se mandaram, perna para que te quero, que aquilo era algo que assustava, ninguém, até então, tendo a mínima idéia que se tratava de um veículo, novidade que, chegando a São Paulo e ao Rio de Janeiro, atracava também em Sergipe. Minha mãe concluía que, no meio da tarde, as pessoas, assustadas e desconfiadas, foram, bem devagar, voltando ao centro urbano de Saco do Ribeiro, para ver se o veículo já tinha ido embora, quando perceberam uma mulher grávida enganchada numa cerca de pau a pique, a espera de socorro.

Não me perguntem, outra vez, se o fato foi verdadeiro, porque a resposta vai ser a mesma.

Uma vez, não faz muito tempo, ouvi que, quando o cinema chegou em determinada cidade sergipana – o nome, não cito, para evitar aborrecimento, protestos e desmentidos -, o pessoal assistindo a fita de bang-bang. De repente, o bandido saca do revólver e atira em direção a platéia. Uma pessoa, rapidamente, se abaixa. Depois de alguns instantes, se levanta, lenta e precavidamente, a perguntar em quem [da platéia] o tiro pegou.

Minha geração, já em época mais recente, bafejada pelo rádio, acostumada a ver veículos nas ruas, despojada do medo do flash das máquinas fotográficas, não se apavorou com o aparelho de televisão, nem tampouco correu quando viu um helicóptero baixar em Itabaiana, nem teve medo do aparelho do telefone. O cinema, desde muito, já tinha mostrado a população itabaianense as novidades que lá iam chegando com atraso considerável, de maneira que a novidade deixava de ser novidade.

O aparelho de televisão pertencia ao dr. Ormeil. A noite, era ligado na primeira sala, a porta e as janelas abertas. Os amigos da família estavam lá, em cadeiras especiais. Na calçada, a molecada, curiosa, se plantava para ver a tela toda azulada e, aqui e ali, umas pipocas pulando para cima e para baixo. O espetáculo se resumia a tais cenas, que atraiam a curiosidade de muitos, Sergipe ainda sem possuir uma repetidora, a fim de assegurar a captação da imagem. Mesmo assim, o aparelho exercia atração.

Nas andanças pelo Estado, na campanha para o governo do Estado, nos idos de 1962, Seixas Dórea, uma vez, chegou, numa quarta-feira, lembro ainda, a Itabaiana, em um helicóptero, que atracou no quadrado vazio da extinta Praça Honorário Mendonça, que depois deixou de ser praça para se cravejar de casas. A aeronave sobrevoando a cidade e a meninada de cabeça para o alto, a acompanhá-la, na busca do local onde o pouso ocorreria. Uma novidade e tanto para quebrar a monotonia daqueles tempos. Mas, graças aos bons deuses, ninguém se assustou, nem correu com medo.

Quando o telefone foi instalado, numa sala térrea do sobrado que pertencera a seu Abílio dos Caixões, na Praça da Matriz, na mesma sala em que ele fazia caixão de defunto, a telefonista foi transformada na pessoa mais importante da época, com tantos fios a sua frente, enfiando um e outro nos orifícios devidos, tira, coloca, um aparelho no ouvido, a gritar o nome de Aracaju, Aracaju, como se Aracaju fosse uma pessoa, acentuando o u, sonoramente, com insistência e reiteração, até que a ligação conseguia ser feita. A gente – e eu também estava no meio dos curiosos – ficava um tempão para presenciar uma pessoa conversando com outra, seja de Aracaju, seja de outro local, na certeza de que estava a testemunhar um fato sumamente inédito e importante, e, porque não dizer, excepcional, pela possibilidade de permitir que de Itabaiana se conversasse com o resto do Brasil, sem sair da cidade, numa evolução científica sem precedentes, superior e muito ao telégrafo que há quase setenta anos por lá já funcionava. Teve até quem ameaçasse mandar uma corda de caranguejo pelo telefone para Aracaju.

Não consta, nos registros históricos, que alguém tivesse a ousadia de insinuar que a voz que saia do aparelho não fosse verdadeira. Ou que se tratasse, por exemplo, de alma do outro mundo. Mas, uma coisa me lembro bem. O hábito de recorrer ao telefone foi lento. O pessoal, desconfiado, deixou primeiro a areia assentar no copo e a novidade se transformar em fato rotineiro. Ninguém se assustava, nem se danava numa corrida para perder o dedão do pé direito, é verdade. Mas, ia devagar ao fundo do pote. Eu estava lá. E vi.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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