E AS CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA

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A festa de Corpus Christi representa o lugar da Eucaristia no cristianismo católico, no ortodoxo-bizantino, também, de alguma forma, na Igreja Anglicana e em muitas expressões da tradição evangélica.É bom salientar que para Lutero, como resquício de sua vivência católica, a Eucaristia era “presença real” durante a celebração da Ceia – ele chamava a essa modalidade de presença “in uso”. Os primeiros cristãos consideravam esse sacramento como o “bonum maximum”, isto é, a melhor coisa que o Senhor Jesus lhes deixara, o bem maior. E, de fato, tudo na tradição católica circula em torno da Eucaristia.

Ela tem a dimensão da Ceia, Última Ceia e Primeira Missa realizada por Cristo. Mas ao lado disso, desenvolveu-se todo um culto “à presença real”: desde a reserva eucarística que ficava para os doentes ou os cristãos prisioneiros, na Igreja Primitiva, até aos grandes milagres em torno da Eucaristia ( por exemplo, em Lanciano, na Itália). Assim, surgiu a Procissão de Corpus Christi, como agradecimento por afastar a peste negra em plena Idade Média. Uma das tradições vê essa Festa tendo começado em âmbito pequeno na Bélgica. Pouco a pouco, essa tradição espalhou-se para toda a Igreja.

No Brasil, com Tomé de Souza, esse costume logo teve início, como uma das mais fortes tradições portuguesas que aqui chegaram. Gilberto Freyre registra essa procissão, em 1552, já com a presença de escravos negros. Pode-se afirmar que essa devoção aqui entrou plenamente, a ponto dos historiadores afirmarem que a expressão religiosa maior do catolicismo no Brasil do século XVIII, foi a da procissão.

A regulamentação básica para o Brasil veio com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia em 1707, com D. Sebastião Monteiro da Vide, “5º Arcebispo do dito Arcebispado e do Conselho de Sua Majestade”. Essas Constituições não regulavam apenas assuntos religiosos, mas tudo concernente ao Brasil – era como uma Constituição que unia a Coroa ao Altar ( resquícios do Padroado).

E lá, é claro, não poderia deixar de haver um lugar para a Procissão de Corpus Christi. O título é:”Da solene Procissão de Corpo de Deus, e que pessoas a devem acompanhar” (Titulo XVI, nº 496). Passo a citar “ipsis litteris” o texto:

“A principal de todas as Procissões é a grande e festiva Procissão do Corpo de Deus, que em cada ano se faz na Quinta Feira depois do Domingo da Trindade, tão encomendada pelos sagrados Cânones e o Concílio Tridentino, e ainda pelas Leis do Reino. Foi ordenada pela Igreja para exaltação do Divino Sacramento, manjar sagrado em que se nos dá o mesmo Cristo Nosso Senhor, para honra de Deus, glória dos católicos, confusão dos hereges, e para que os fiéis lembrados desse imenso benefício, com fervoroso afeto se movam a render o obséquio devido a tão Divina Majestade, e a dar as graças a Cristo Nosso Senhor, tão liberalíssimo benfeitor, que se nos dá a si mesmo em iguaria da vida espiritual. Pelo que mandamos, que nesta Cidade se faça essa Procissão com o ornato possível de pompa e majestade, assim como até agora se fez, na Quinta feira de Corpus Christi pela manhã, acabada a celebridade da Missa, e sairá de nossa Sé, e Nós, e nossos sucessores, levaremos a custódia do Santíssimo Sacramento, e tendo legítimo impedimento, a levará o Deão do nosso Cabido, ou Dignidade a quem pertencer. A mesma Procissão se poderá fazer nas mais Igrejas de nosso Arcebispado, em que houver costume de se fazer, havendo o ornato necessário, na forma que ordena o Ritual Romano.

E mandamos sob pena de excomunhão maior ipso facto, e de mil réis de multa a todos e quaisquer Clérigos de Ordens Sacras , ou Beneficiados, ainda que sejam de Menores, de qualquer qualidade ou condição que sejam, que se acharem nessa Cidade, ou em qualquer das Vilas ou lugares em que se fizer a Procissão no dito dia de Corpus Christi, a acompanhem da Igreja donde sair, até se recolher . E irão com vestido clerical decente, e com sobrepelizes lavadas, coroas e barbas feitas.(…) E o nosso Provisor nesta Cidade mandará dois dias antes fixar um Edital nas portas da nossa Sé, porque mande às pessoas , que a isso são obrigadas, se achem na tal Procissão, declarando-lhes que se assim o não cumprirem, incorrem nas ditas penas de excomunhão e de dinheiro”.

A celebração da Eucaristia contém , sob o ponto de vista cultural, uma dimensão profundamente humana: o alimento é algo sagrado. O banquete é um fato de dimensão humana que manifesta, em todos os povos e em todas as religiões, um significado familiar e de solidariedade humana e até de simbolizar a união com os defuntos, ancestrais e com a Divindade ( na Bahia sabe-se da profundidade do que significa “comida de santo”).

Concluo com dois textos que dão base bíblico-teológica a essa Festa: “Melquisedeque trouxe pão e vinho, pois era sacerdote do Deus Altíssimo e abençoou Abraão” (Gen.14,18). E no Novo Testamento: ”Disse Jesus: Eu sou o pão vivo descido do céu.Se alguém come desse pão, viverá eternamente”( Jo. 6,51).

Sebastião Heber. Professor Adjunto de Antropologia da UNEB, da Faculdade 2 de Julho. Membro do Instituo Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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