professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
Quando este artigo sair, a bola já terá rolado há tempos nos gramados da África do Sul. A festa eufórica do país das vuvuzelas, com direito a astros internacionais, deslumbrou o mundo.
O mundo inteiro, como a cada quatro anos, está pendente de uma bola e de vinte e dois pares das pernas mais caras e bem pagas do mundo. No entanto, algumas coisas fazem esta copa diferente das outras. Ela acontece no país que foi palco de uma das segregações mais cruéis do planeta: o terrível “apartheid”. Durante décadas os sul-africanos viveram sérios conflitos, numa sanguinária luta racial que dividiu o país e dizimou seus habitantes. Hoje, a África do Sul pode exibir sua beleza e riqueza humana e cultural, palco e moradia de tantas raças, habitantes, religiões, etnias e línguas, em alegre sinfonia, sediando um evento de repercussão mundial como este. E estreando uma paz que por ser recente não é menos benéfica e ansiosamente esperada.
Mas não só pelo futebol e pela pluralidade inerente à sua identidade que os olhos do mundo inteiro se voltam para a África do Sul. Trata-se também do país que é berço e pátria de uma das maiores pesonalidades da humanidade neste século XXI: Nelson Mandela. A presença desse grande líder marca para sempre a Copa do mundo de 2010 e a faz inesquecível. Fiel à luta antiapartheid, Mandela passou mais de vinte anos no cárcere e agora, livre, é um ícone.
Diante do clima de euforia e do toque de insanidade que às vezes marca os campeonatos mundiais de futebol com episódios de violência, figuras como Mandela e o bispo Desmond Tutu trazem um toque de grandeza e profundidade que, mesmo em meio à mais legítima alegria, nos relembram a seriedade da condição humana. Aqueles que hoje cantam e se movem nos estádios com a ginga incomparável de sua raça, levados pelo ritmo irresistível do espetáculo de abertura do campeonato, são os mesmos que souberam arriscar a vida pela liberdade de seu povo.
Já no início da Copa, antes que a bola rolasse nos primeiros jogos, essa seriedade que nos traz de volta ao chão da vida real se fez presente dolorosamente no já tão marcado coração de Mandela. Ao voltar do espetáculo de abertura, sua bisneta de 13 anos, Zenani Mandela, morreu em um acidente de automóvel.
Enquanto o país abriga o mundo inteiro no colossal evento esportivo, o clã Mandela vive a terrível e irreparável perda da pequena Zenani, vida desabrochando em flor, ceifada antes de abrir-se plenamente. Podemos sentir, por trás das vuvuzelas, dos tambores, atabaques, trombetas e foguetes, o coração do líder confrangido pela dor, sua cabeça branca curvada e seus olhos turvos, vergado pelo golpe.
A nuca que a prepotência dos colonizadores não conseguiu dobrar, o afeto agora o faz. Ainda que possa ser visto nos festejos da Copa, Mandela estará vivendo seu luto.
Em meio à ansiedade dos jogos e dos resultados da Copa, nos é dada a oportunidade de calarmo-nos com o silêncio de Mandela, entrar em comunhão com sua dor, assim como aclamamos sua figura no estádio. Esse doloroso episódio não arruína o clima da Copa do mundo. Pelo contrário, só o torna mais humano.
Autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
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