MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL DE VIDA

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Estou fazendo uma pesquisa em Cachoeira que é para o meu Pós-doutorado na PUC de S. Paulo. O foco da pesquisa é em torno de D. Dalva Damiana, fundadora do samba de roda Suerdieck, que já ultrapassou os 50 anos de existência. Ela é detentora de uma sabedoria singular. Suas avós, materna e paterna, morreram com cerca de 90 anos. Toda a vivência de uma Cachoeira que não está escrita, mas que se conserva na mente e no coração dela, advém das informações que suas avós lhe deram.São, especialmente, preciosos os dados concernentes aos resquícios do religioso entre os anos 30 e 50, que suas avós vivenciaram.

D. Dalva nasceu em Cachoeira em 27 de setembro de 1927, filha de Antônio José de Freitas e de Maria São Pedro de Freitas. O pai morreu cedo, com 51 anos, era sapateiro, e guarda municipal. A mãe foi mais longeva, morreu aos 97 anos. Sua avó paterna chama-se Vicência Ribeiro da Costa. D.Dalva não se lembra da data do nascimento dela, mas sabe que o aniversário era no dia de S. José, isto é, 19 de março. Ela negociava com côco e peixe em Feira de Santana. A avó paterna, Maria Tereza de Jesus, faleceu no dia de ano novo, mas ela também não se lembra do ano. Ela lavava roupa no rio que passa no bairro do Caquende. “A roupa era bem lavada e até fervida”, conta ela, e tinha mitos fregueses. Ambas as avós faleceram com mais de 80 anos – “talvez até mais”, acrescenta ela.

É a partir da perspectiva dos saberes locais que vem sendo desenvolvida essa pesquisa, tendo por base a História Oral de Vida. Sabe-se que nas sociedades ágrafas, a palavra assumia o valor que esses povos conferiam à transmissão dos conhecimentos por meio da oralidade, de cuja capacidade herdavam os conhecimentos e os costumes dos grupos.

Através dos relatos conservados por D. Dalva, as avós mostram sua vivência naquela cidade e refletem as práticas sócio-religiosas de sua época. Esses elementos são uma moldura para se entender a própria cidade.

As avós participaram das atividades religiosas, especialmente como integrantes de irmandades, que são canais singulares de uma vivência religiosa portadoras de uma sabedoria proveniente de espaços não-formais, além de serem um lócus de resistência. As irmandades tiveram, desde as suas origens, um sentido social, Isto é, foram de expressão interétnica, com obrigações de colaboração mútua com os seus membros. Tudo isso seria para fins múltiplos: desde a compra de alforria, festejos,pagamentos de missa, caridade, vestuário, até a possibilidade de um funeral decente.

Isso tudo nos leva a crer e a constatar que a memória presente só pode ser reconstituída através do testemunho oral das pessoas mais idosas.

Muitas vezes encontram-se preconceitos contra os relatos orais: seriam por demais subjetivos, apenas refletem uma nostalgia do passado. Mas a memória não é apenas um mero vôo que nos transporta para um passado nostálgico, mas ela traduz e aponta para o sentimento de pertença salvando a identidade. O surgimento da História Oral de Vida tem despertado nos cientistas sociais, de modo particular, nos historiadores e antropólogos, um enorme interesse. Na verdade, esse método tem contribuído para ampliar as alternativas das pesquisas históricas na contemporaneidade e tem sido um amplo espaço interdisciplinar para o qual convergem inúmeros diálogos entre as Ciências Sociais.A partir da 2ª Guerra Mundial, com o surgimento de novas tecnologias – gravador, fita magnética de áudio, etc. – ela teve uma evolução favorável, ganhou força e se expandiu com característica de ciência engajada e militante.Os movimentos contestadores, respaldados em Foucault, Goffmann, Clastres, Thompson e outros cientistas sociais e historiadores, delinearam-se por um viés que estava voltado para dar vez e voz aos excluídos e às minorias silenciosas.

Através desses relatos pode-se inferir quais foram as expressões religiosas mais marcantes naquele período em Cachoeira. Como esses grupos agiam e atuavam? Ficavam à margem da Igreja oficial, na sua expressão paroquial, tinham o controle dos vigários, ou gozavam de uma certa independência? Há elementos daquela vivência que ainda estão presentes, ou muitos se perderam, houve trocas de expressões religiosas?

Sebastião Heber. Professor Adjunto de Antropologia da UNEB, da Faculdade 2 de Julho. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia Mater Salvatoris.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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