Pelo que se comentou, depois, Euclides teria mandado retirar um vendedor de rede de uma barraca, no Largo da Feira. O vendedor, que era pessedista, foi reclamar a Manoel Teles. Sei que, de repente, e aí começa a minha memória a funcionar, há um corre-corre na feira. Mais ou menos, às 10 horas, salvo engano. Eu estava na loja de papai. Vivíamos o sábado 20 de abril de 1963. Papai atendia a pequena freguesia. Vendo a movimentação apressada dos fereiros, como se quisessem deixar o ambiente imediatamente, vou até a porta e vejo, um pouco na frente das lojas de Tonho Siqueira e Francisquinho Barbosa, uma fileira de homens: Euclides, Daniel, e mais três da Guarda Municipal.

Não tenho certeza se Sólon estava no meio. Euclides, de revólver na mão, apontando-o para o ar, gritava (eu ouvia bem) que a arma era para Manoel Teles. A frase era essa: olhe o que tenho para você, molequinho. O chefe pessedista, quase na frente da loja de papai, avançava em direção ao adversário udenista, afirmando que não tinha medo de arma na mão de …. (censurado). João Andrade, caixeiro do armazém de Manoel Teles, o segurava, pedindo para seu patrão parar. Não faça isso, seu Manoel, pedia.

Enquanto o povo esvaziava a feira (vi bem Zé Crispim fechando a loja e se retirando), eu, na maior inocência do mundo, sem medir o perigo que corria de ficar quase a mercê de alguma bala – Manoel Teles estava a menos de dois metros de mim – coloquei um tamborete na segunda porta da loja, a fim de melhor ver a ocorrência. O instinto de ser testemunha de um grande fato me fazia correr o risco.

A partir daí, não me perguntem o que ocorreu. Não sei responder. Talvez os dois chefes políticos tenham achado mais prudente se retirar para os seus armazéns. Se Euclides, aquela altura, tivesse atirado, ou determinado que alguém da Guarda Municipal o fizesse, Manoel Teles, que estava desarmado, era alvo fácil. Além do mais, Euclides levava a vantagem de estar armado e bem acompanhado. Penso até que Daniel portava um rifle, além do charuto na boca. O confronto não interessaria a nenhum deles. Feita a arruaça na feira, devem ter batido pernas em direção aos respectivos armazéns.

Dizem que Leite Neto, pelo PSD, e Antonio Torres, pela UDN, estiveram em Itabaiana, no mesmo dia, para parlamentar uma solução pacífica. Da bomba, por ora, só a fumaça. O estrondo ficaria para o dia seguinte, porque, quem pensa que a paz voltou a reinar perdeu a aposta. No outro dia, domingo, 21 de abril de 1963, após o término da sessão dos dois cinemas, a Polícia Militar, sob o comando do Major Erminio, e a Guarda Municipal, dirigida pelo Tenente Sólon, secundada pelo sargento Daniel, entraram em confronto, na Praça da Matriz, nas imediações da Prefeitura Municipal. O tiro comeu no centro. Euclides não se encontrava mais em Itabaiana. Manoel Teles, ouvindo os tiros, saiu de casa e foi até a esquina da Prefeitura, onde, dizem, Daniel, ao vê-lo, teria lhe dirigido uma saraivada de tiros de metralhadora, que não o atingiram. É que, segundo ouvi, a metralhadora, quando impulsionada, dá um pulo para cima, e, como Daniel não sabia maneja-la, os disparos passaram além do bonito [e extinto] platibanda da Prefeitura.

A praça e imediações dormiram ouvindo os disparos que, a partir de certo momento, mais ou menos, depois das vinte e uma horas e meia, soaram, todos dentro da Praça da Matriz. O choque da Polícia Militar com a Guarda Municipal já era esperado. Eu dormia, cansado. Minha irmã casou-se no início da noite e a caravana, vindo de Aracaju, já tinha se retirado para a longa viagem de volta, levando os nubentes. A festa fora lá em casa e a arrumação de tudo, ao lado de algum gole de álcool, que devo ter ingerido, me tirou a atenção para a troca de tiros, cuja notícia, antes de a última luz da casa ser apagada, já tinha nos chegado.

De madrugada, Bosco me acordou. Ouvia tiros. Acreditei que estava sonhado. Não dei atenção e voltei ao meu sono de menino de treze anos. Somente na manhã da segunda-feira é que os fatos ganharam outra tonalidade. Luiz Carlos, de manhã cedo, chegou, nos arrastando até a porta da Igreja, ponto máximo onde a gente podia ir. Dali dava para ver a polícia atrás dos morros de areia em frente a [futura] sede da agência do Banco do Brasil, apontando armas para a casa de Euclides, onde a guarda, ou o que restava, se escondia. Parecia uma operação de guerra.

A gente era muito criança e não ia se preocupar em permanecer na praça por muito tempo, de maneira que o espaço da manhã fica vazio. A memória não registra o que fiz até a hora do almoço. De uma coisa, se sabia: as aulas, no ginásio, estavam suspensas. Depois do almoço, os membros da Guarda Municipal, escondidos na casa de Euclides, se entregaram as forças policiais. A Praça da Matriz, outra vez, se encheu de curiosos para ver o nada. No sobrado, onde a banda funcionava, teria falecido um estranho, que, no momento do tiroteio, ali teria procurado refúgio. Uma bala o atingira. Curioso foi o ocorrido com o desenho de uma mulher nua na parede do sobrado, no caminho da escada. Uma bala, disparada contra o sobrado, que, ao que parece, abrigava, em seu primeiro andar, a Guarda Municipal, deixava um enorme buraco na parede, bem em cima de determinada parte, cujo nome se evita declinar.

Em meio ao tiroteio, do domingo, uma ocorrência cômica. Pelé, da Guarda Municipal, de fuzil na mão, no meio do tiroteio, a suplicar socorro a uma dona de casa, na Praça da Matriz. Ela, apavorada, com o guarda armado; ele, tremendo de medo, em busca de um abrigo. O fato era repassado, suplantando os demais.

Alguns dias depois, foguetes, no final da tarde, comemoravam a chegada dos elementos da Guarda Municipal, liberados por força de habeas corpus, pelo Tribunal de Justiça, enquanto a Polícia Militar chorava a morte do Major Erminio, que, atingido por um disparo, falecia no Hospital Cirurgia, circulando o boato que a causa morte teria sido, em verdade, uma injeção dolosamente aplicada.

No fundo, a gente vivia, sem a consciência da verdade, um pouco da violenta história de Itabaiana daqueles tempos.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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