teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e
Ciências Humanas da PUC-Rio.

A Quaresma já vai avançada. Daqui a pouco mais de duas semanas terá início a Semana Santa, que culmina com a celebração da Paixão e da Páscoa. Durante este tempo, a Igreja convida os fiéis à penitência e à conversão, enquanto acompanham Jesus de Nazaré em seu caminho para a Paixão.

Não se trata de uma prática antiquada e sem sentido para os dias de hoje, mas um tempo especial de purificação. E neste processo, a ascese é de fundamental importância, embora a palavra esteja em desuso e possa provocar repulsa ou estranhamento.

Vivemos em uma cultura movediça, onde os sentidos são acossados diariamente com estímulos constantes, para nos levar ao consumo desenfreado, à tirania do prazer, à avidez do ter e do possuir, aos quais é muito difícil resistir.

Esta cultura transtorna nossa interioridade, pois trabalha fundamentalmente em nossos sentidos, provocando sensações às vezes tão intensas, refinadas e contínuas, que podem entrar em nós sem tornar-se percepções conscientes, e muito menos elaboradas com um pensamento próprio. Há, portanto, para cada um de nós um risco constante de viver permanentemente no fluxo contínuo das sensações que chegam aos nossos sentidos.

Na contramão dessa cultura do consumo e do bem-estar, a Igreja propõe a ascese. A palavra grega quer dizer exercício. Trata-se de exercitar-se para recuperar o domínio de si e não ser joguete dócil da propaganda e da cultura de sensações. Exercitar o corpo e o espírito a fim de não se submeter a todas as adicções que a sociedade nos apresenta incessantemente.

Sob esta luz, portanto, o jejum tem pleno sentido. Assim também os exercícios físicos na justa medida. Abster-se de comida, de álcool, de fumo e também do uso imoderado da internet e da televisão, do jogo, da droga, do alucinógeno não apenas permite ao corpo e ao espírito estarem mais disponíveis para a oração e o serviço. O corpo em jejum e adestrado, o espírito vigilante e diligente são terra árida para as compulsões do consumo. Fazem-nos mais livres e dispostos para aquilo que é realmente importante, deixando de lado o que aliena e anestesia.

Tem também sentido a oração, caminho de gratuidade que não controlamos nem manipulamos, onde um Outro absoluto conduz e tem as rédeas de uma experiência que não podemos produzir, mas apenas esperar, dispor-nos, acolher agradecidamente.

Assim também o despojamento pessoal expresso na esmola dada ao pobre, na ajuda ao necessitado, em todas as obras de misericórdia: visitar os doentes, vestir os nus, alimentar os famintos e dar de beber aos sedentos, fazer-se presente nos cárceres vários de cada dia, cuidar das crianças, atender os idosos. Tudo isso nos tira de nós mesmos e nos volta para os outros, na contramão de uma cultura que nos ensina que há que guardar, acumular, entesourar, investir, multiplicar os próprios bens.

A razão de ser desse exercício ascético nos será revelada em uma vida mais livre, em um coração mais aberto e disponível para acompanhar Jesus que, à frente de seus discípulos, caminha para Jerusalém tendo diante dos olhos apenas a vontade do Pai e o desejo de realizá-la. Para segui-lo em uma cultura como a nossa é imprescindível exercitar-se. A Quaresma pretende ser uma ocasião propícia para isso.

Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)

Copyright 2010 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

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