Padre Beto 8 de março de 2010

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Um missionário procurava transmitir a mensagem cristã para os nativos de uma ilha do Pacífico. Ao tentar traduzir alguns textos bíblicos, o homem se deparou com uma dificuldade: a “esperança”. Esta palavra não pertencia ao vocabulário dos habitantes da ilha e o missionário não conseguia encontrar outra palavra que possuísse um significado pelo menos semelhante. A dificuldade permanecia até o dia em que o filho do missionário veio a falecer. Aquele homem de profunda fé enfrentou, então, a difícil tarefa de enterrar seu próprio filho. Durante o sepultamento, um jovem nativo da ilha observava o missionário com muita atenção e depois que todos tinham voltado para casa e o missionário estava sozinho, o jovem se aproximou dizendo: “O senhor acabou de enterrar seu próprio filho, mas em nenhum momento o senhor demonstrou desespero. Se fosse um dos pais de nossa tribo, ele estaria aos prantos!” O missionário olhou com certa admiração a coragem do j! ovem ao fazer o comentário e disse: “Eu estou profundamente triste com a partida de meu filho, mas estou convicto que nós nos veremos novamente!” “Ah! Eu sei”, comentou o jovem, “vocês possuem a capacidade de olhar além dos horizontes!” O rosto do missionário imediatamente se iluminou, ele havia finalmente encontrado a tradução certa para a palavra esperança: “olhar além dos horizontes”.

Muitas vezes, afirmamos que “a vida nos prega peças” ao nos surpreender com o desenrolar inesperado das situações, ou então, quando imaginamos entender o momento que vivemos e mais tarde nos deparamos com outro significado. Muitos utilizam a expressão “ironia do destino”. Eu acredito profundamente que o destino no sentido de vivermos em um determinismo inevitável não passa de uma ilusão humana, uma ótima desculpa para a nossa incompetência ou uma fácil consolação para situações não desejáveis. A ironia da vida, porém, é um fato quase que cotidiano e possui uma função extremamente benéfica. Ela não somente pode ser interpretada nos fatos e acontecimentos de nossa vida, mas pode tornar-se uma marcante atitude humana. Seres humanos também podem ser irônicos. Por sua vez, a ironia como atitude humana é confundida normalmente com falta de educação, expressão de frustração ou atitude de quem quer ser “estraga prazeres”. Mas se prestar! mos bem a atenção, geralmente a pessoa irônica possui um humor muito inteligente e uma grande lucidez diante das situações da vida.

Ironia vem do grego “eróneia”, palavra próxima de “eromai” que quer dizer perguntar, questionar, ir à procura. Ironia é, a princípio, uma figura de linguagem, ou seja, um modo de exprimir-se que consiste em dizer o contrário daquilo que se está pensando ou sentindo. Geralmente esta atitude surge da não conformidade com situações, posturas, mentalidades ou com a ignorância dos demais. Ironia é, portanto, uma postura que procura de uma forma não dogmática libertar situações e pessoas de interpretações pobres, unilaterais ou preconceituosas. O irônico nunca é conformista e dificilmente aceita respostas prontas e fáceis. A grande habilidade da pessoa que utiliza ironias é conseguir tornar relativas e questionáveis visões de mundo absolutas e superficiais. Desta forma utilizava Sócrates a ironia como um meio crítico e pedagógico para levar as pessoas ao reconhecimento de sua ignorância e a necessidade de buscar melhor fundamentação para s! uas idéias e conhecimentos. O escritor espanhol Jorge Semprún faz um de seus personagens incorporar o método socrático, quando este afirma a um de seus opositores: “companheiro, permita-me que lhe faça sua autocrítica!” Voltaire foi um mestre das expressões irônicas e chegou a escrever uma história universal da Ironia, na qual procura fundamentar a idéia de que qualquer fundamentalismo leva à intolerância e um bom remédio para resgatar a lucidez seria a divina ironia. “O ser que é ser transforma tudo em flores…/ e para ironizar as próprias dores/ canta por entre as águas do Dilúvio” (Cruz e Sousa). Para Heine, a ironia possui a função de combater o ilusionismo e levar as pessoas a pensarem melhor sobre suas posturas e atitudes. Justamente nesta linha de pensamento, podemos abstrair esta figura de linguagem, algo tipicamente humano, e enxerga-la no desenvolvimento da própria vida. Situações tornam-se irônicas, quando desestruturam nossa visã! o linear sobre o mundo, nossos preconceitos diante dos outros e nos re tiram do comodismo mental. Sem dúvida alguma, como a ironia é uma provocação sutil e perspicaz, é necessário um grau de raciocínio para detectá-la e aprender com ela. Com certeza, a vida é irônica, porém muitas pessoas não possuem o necessário senso critico para perceber sua ironia e repensar sobre seu próprio modo de viver. “Uma montanha tinha dores de parto; e pelos seus terríveis gemidos, havia na região grandes expectativas. Por fim, a montanha acabou parindo um belo e frágil ratinho” (Fábula de Fedro). De qualquer forma é importante estar atento quando sentimos um desconforto diante das situações da vida ou quando somos pegos de surpresa. A melhor forma de aprender com a ironia dos outros e da vida é não perder o bom humor e manter a distância necessária para a reflexão. “Silêncio: os nove décimos da sabedoria” (Honoré de Balzac).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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