UM ENCONTRO NA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA

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No dia 25 de março, na Academia de Letras da Bahia, será concluído o Seminário ( que se desenvolverá nos dias 23, 24 e 25/03) cuja temática é : Manoel Querino – Personalidades Negras da Bahia. Na conclusão, será apresentada a Irmandade da Boa Morte de S. Gonçalo e que contará com a presença das irmãs integrantes dessa confraria.

Essa Irmandade está na linha de continuidade das muitas outras, sob o mesmo título, que se desenvolveram na Bahia, no século XIX.

Conforme os mais consagrados estudiosos, tudo começou na Barroquinha. Mas falta uma documentação mais precisa, pois o arquivo desapareceu num incêndio, deixando no ar interrogações sobre a existência do Compromisso que, de fato, caracteriza a todas as Irmandades oficialmente constituídas .

As Irmandades foram o lócus privilegiado para a ascensão social do negro no Brasil. De fato, a religião foi o único bem que ele trouxera da África e que ninguém pode tirar. Gilberto Freyre diz que “com a destruição racial das linhagens, dos clãs, eles se apegavam tanto mais aos seus ritos e a seus deuses,as únicas coisas que lhes restaram do seu país natal, o tesouro que puderam trazer consigo. Os valores foram coagulados e dentre eles, a religião era o mais importante nas suas vidas”.

As Irmandades foram o lugar das aspirações mais ativas da busca democrática. Nelas se realizaram os debates e lutas que não podiam se empreender em praça pública.

A cidade de S. Gonçalo pertenceu a Cachoeira até 1884. E sofreu toda influência daquela cidade, nos aspectos sócio-políticos e, sobretudo, no religioso. O Arraial já é citado nos arquivos conservados na UEFS, desde o século XVI, e se tornou famosa pela aparição do santo português que lhe dá nome. Tudo teria acontecido na famosa Fonte da Gameleira. A povoação fora lugar de passagem dos bandeirantes, alem de ser ponto de cultivo da lavoura fumageira e ter tido na cana de açúcar e na criação do gado, um incremento para a economia local. O Marquês de Pombal já havia legislado sobre a plantação do tabaco nos campos de Cachoeira, à qual S. Gonçalo pertencia. Ela se encontra, portanto, dentro do projeto colonizador.

As fontes para essa Irmandade, já secular, vêm dos registros de óbito das irmãs, dos cadernos conservados por elas, das atas da Igreja Matriz, e, sobretudo, da tradição oral, grande via de reconstituição do passado.

É considerada fundadora da irmandade, a senhora Felismina Araujo e seguida de sua filha Cecília Araujo. A primeira já participara da Irmandade de Cachoeira, e ainda usava a tradicional beca e seu nome já aparece no primeiro caderno da Irmandade em 1900. A atual Juíza Perpétua é a senhora Maria da Conceição Cazumbá, conhecida como Dona Martina. Ela substitui sua mãe, Maria Tomásia, que, por sua vez, substitui a avó, Maria Bilô Felícia. As duas últimas conviveram com D. Felismina e D. Martina ainda se lembra de Cecília. Em cada ano há uma Presidente que organiza a festa. Este ano é a senhora Maria José. Mas os outros cargos são integrados pela vice presidente, a “escrivona” e a zeladora, que tem a missão de vestir Nossa Senhora no dia da festa. A celebração é sempre num domingo em torno do dia 15 de agosto, dia da Assunção de Maria, que,segundo a tradição portuguesa, se chama, Boa Morte. Esse ano será no próprio dia 15 pois é dia de domingo. A Festa é preparada por um tríduo que antigamente se realizava na casa da Presidente, que guarda a imagem da santa. Na véspera da Festa há uma missa pelas irmãs falecidas. Há objetos que caracterizam a Irmandade e que são usados no dia festivo. São o cajado (conforme a srª Martina, já tem mais de 100 anos), os livros e o baú, que recebe as doações para a festa. Diferente da de Cachoeira, essa Irmandade tem a participação de homens como membros , mas eles não podem portar o cajado, pois é um símbolo de poder/comando feminino. Isso ressalta a autoridade da mulher nesse contexto sócio-religioso.

Na verdade, a participação nas Irmandades foi fundamental para a preservação de suas tradições. Criou-se, assim, “uma família ritual”, segundo Reis, e foi um lugar de “negociação” com a religião do branco, conforme Ubiratã de Castro. A cultura não pode viver incólume, e assim, foi recriada, gerando outra cultura.

E a religião, através das irmandades, foi o lócus privilegiado, para a presença da mulher, num comando simbólico/ritual de tradições que fazem um amálgama com o culto ancestral ( muitas delas pertencem ao candomblé).

A Irmandade da Boa Morte de S. Gonçalo é um testemunho vivo dessa tradição.

Sebastião Heber.Professor Adjunto de Antropologia da Uneb, da Faculdade 2 de Julho, Membro do Instituto Geográfico e Histórico da BA e da Academis Mater Salvatoris.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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