Djanira Silva 30 de março de 2010

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Acordo e vejo
Que durante o sono
Minha morte foi adiada
A vida prolongada
Posso ainda,
Jogar um segundo tempo

Antes que elas se fechassem eu precisava fugir. Fugir das portas, das janelas, das cortinas vermelhas, do fogo e do sangue. Na ânsia de atravessar para o outro lado, avistei seu rosto.
Da cadeira onde estava, como quem viaja, lançou-me um derradeiro olhar. A porta ainda aberta, sem chaves, sem grades, me permitia ver no espelho a imagem esfumaçada. Ali, em poucas horas, a ausência estraçalhou meus sonhos.
Vencedor da corrida deixava-me para trás. Nos lábios selados, o segredo das palavras omitidas. Assim, terminava a história que juntos havíamos começado: na tristeza e na alegria, na saúde e na doença. Fechava-se, no seu olhar, a derradeira porta.
Com a esperteza de um jogador que guarda uma carta na manga, jogara a última cartada, ganhara o jogo, deixando a maior e a pior das heranças – um espaço vazio dentro de um imenso nada. Sombras pintadas nas paredes, apenas sombras. Lágrimas de grafite na pureza magoada. Se tivesse me trocado por outra, eu teria o ódio para me ajudar a sofrer. Se tivesse partido sozinho eu o saberia no mundo, em qualquer lugar. Quem sabe, até poderia vê-lo de vez em quando, matar a saudade dos meus olhos. Mas, assim, do jeito que partiu, sem dizer para onde, foi covardia.
Antes que a porta se fechasse eu precisava fugir.
A linha do horizonte tingiu de sangue uma história apenas começada.
O que fazer do espaço vazio, como ocupá-lo, como avaliar os mistérios da alma que acabara de fugir sem dizer adeus?
No quarto, a cama, o sorriso, o abraço, o abraço que um dia capturou a inocência de quem ainda não temia as ameaças da vida. Na varanda a cadeira de balanço, as chinelas submissas, o jornal de ontem.
Foi assim, assim mesmo, ali mesmo que comecei a morrer.
Não era tempo ainda, e ele descobriu a saída. Cortando caminho, partiu por uma estrada que eu não conhecia. Naquela noite apagou-se no meu rosto o último sorriso verdadeiro, a alegria que me fizera multiplicar a vida, brincar de rodas, de coelho sai, passar o anel para ser feliz.
Calma, paciência, conformação. Quem inventou esta voz? Algumas palavras se reproduzem, bastardas, mentirosas, usam máscaras, riem, zombam como se fossem gente.
Naquela noite, um raio atravessou-me o corpo. Entre dois mundos dividiu minha dor. Onde estava a outra alma a que me entregaram para começar uma história?
Vingança, fuga, cilada? A supremacia do sábio que deixava para trás um emaranhado de lembranças de cheiros, de imagens. Coisas que a gente não sabe quando nascem nem quando morrem.
Agora, a solidão, monstro de muitas cabeças, voz de trovoada, agita-me os pensamentos. Cada vez mais compreendo menos. Meu mundo entrou em coma. A cada dia morre um pouco.
E assim, nos suspiros do vento ele partiu.
Ali fiquei sem saber para onde ir. Fechar os olhos e morrer também? Fugir? Para onde? Fiquei ali, ali mesmo fiquei olhando sem ver, escutando sem ouvir. Esta amargura tão grande, meu Deus, como suportá-la? O coração disparado, o rosto sem cor, as mãos geladas. Gritar? Como abrir o peito para soltar o grito? Preferi parar. Os ombros caídos, as mãos geladas, nos olhos uma ameaça de chuva.
O silêncio se multiplicava na sala, no quarto, na cama, na rua, no mundo. E doía e cravava as garras no meu corpo, na minha alma, no coração que não sabia parar as batidas descompassadas, pelos sustos da respiração.
E foi assim, assim mesmo, que ele se foi.

Obs: Imagem enviada pela autora.
Texto retirado do livro da autora – A Morte Cega

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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