Sempre que me deparo com bolo de milho, a figura que surge na minha mente é a do meu pai. Em sua loja de tecidos, no Largo da Feira, em Itabaiana, nos dias de sábado, havia sempre bolo de milho e de macaxeira. Aqui e ali, em momentos de folga, eu ia me servindo e mastigando. Mas só o de milho é que me bole a lembrança. Talvez pelo sabor mais forte. Não sei bem explicar.

Aliás, da feira de Itabaiana muita lembrança emerge, agora. Acho que enquanto o homem luta por um lugar ao sol, a infância desaparece de sua memória. Depois, quando a vida está assentada ou a velhice começa a anunciar presença, as recordações vão aparecendo e tomando conta. E aí que aparece o bolo de milho na sua ligação direta com o meu pai.

Outra, também conectada com a feira de Itabaiana, é ocupada pelo tijolo, espécie de cocada feita com raiz de umbu. Apresentava-se nas cores branca e cinzenta. Era vendido, à época da minha infância – e lá se vai um bocado de tempo -, quase no meio do Largo da Feira. Tijolo era o nome, pelo seu formato idêntico ao do tijolo usado nas construções. Só que bem pequeno e, igualmente, sólido, de maneira a não se grudar na mão, como o quebra-queixo. Na barraca do tijolo, religiosamente, me dirigia, todo sábado. Recordo-me bem que, nos tempos do primário, o tijolo fazia parte da minha minúscula feira de gulodice. Acho que, no período de ginásio, o tijolo perdeu a atração.

Euclides da Cunha (OS SERTÕES), ao focalizar o umbuzeiro e ao enumerar suas qualidades, não se debruça sobre a cocada que as suas raízes são pródigas em fermentar. Talvez, não tenha conhecido o tijolo.

Encontrei o termo tijolo no livro HISTÓRIA DOS SABORES PERNAMBUCANOS, de Maria Lectícia, já citado em artigo anterior. A referência é feita à rapadura, por idêntico formato. Na dicção da autora: E tijolos de açúcar mascavo concentrado, conhecidos como rapadura (p. 24). O que me marcou foi o uso do termo tijolo, que não sei, nos dias atuais, se ainda é o mesmo, em termos de feira de Itabaiana. Mas, lá em Pernambuco, na Zona da Mata, a palavra aparece, para matar minha curiosidade e me fazer retornar ao tempo para viver, outra vez, a mesma atração pela cocada de raiz de umbu. Lá, hoje, ainda, como ontem, aqui, a conexão de tudo na mesma palavra: tijolo.

O livro de Maria Lectícia reaviva as minhas lembranças, ao tempo em que fornece conhecimentos acerca das comidas pernambucanas. De repente, eu, que nunca li nada a respeito de culinária, e de cozinha mal sei esquentar água para o café, me vejo com os olhos pregados nas páginas do livro, de caneta na mão, grifando o que me chama à atenção. A galinha de cabidela, por exemplo, expressão que ouvi, pela vez primeira, na década de noventa, em João Pessoa, quando ocupei, por um mês, em caráter de substituição, a 1a. Vara Federal daquela Seção. Nome bonito, pomposo, de origem árabe, que, em Itabaiana, era conhecida por galinha ao molho pardo. Eu muito vi mamãe sangrando a galinha pelo pescoço, aparando o sangue em uma xícara, para preparar uma parte da galinha ao molho pardo. A galinha de cabidela me decepciona, porque, afinal, não me era novidade alguma: semanalmente, aos domingos, se constituía no prato que, nos meus tempos de infância, era servido à mesa, diferenciando-se apenas nos ingredientes do acompanhamento.

Há outra coisa que HISTÓRIA DOS SABORES PERNAMBUCANOS me faz viajar para a infância: o araçá. Miúdo, ora esverdeado, ora amarelado, de sabor doce, vendido em lata, a preço baixo. Era produto raro, não tanto sazonal. O trabalho, de quem ia devorar o araçá, era só de excluir as pontas. O mais ia direto para a boca. O araçá, pelo menos, esse, o miúdo, desapareceu aos poucos, a medida em que o proprietário de terras, ao redor da cidade, foi derrubando o araçazeiro a fim de, no local, plantar capim para o gado.

Na Praia do Saco, conheci um pé de araçá, bem graúdo, do tamanho de uma goiaba, denominado, ali, como araçá-cagão, que terminou decepado pela molecada, depois de tentativas frustradas de queimá-lo. Em Estância, aliás, é comum a venda de doce de araçá, doce que tem o verde como cor, parecendo uma goiabada. Não sei se o araçá, do doce, tipo goiabada, é pequenino como o araçá que era vendido na feira de Itabaiana, ocasionalmente, no meu tempo de menino.

As fotos do araçá, que o livro referido traz, revelam, justamente, o araçá pequeno, isto é, do que muito apreciei em remotas datas, chamado, entre nós, somente de araçá, sem a companhia elegante de nenhum outro termo para melhor qualificá-lo. E se tinha nome próprio, para a gente, que devorava um litro em poucos minutos, era somente o araçá, despojado de qualquer nobreza, sendo certo que desapareceu de circulação, pelo menos, em Itabaiana, visto que, em nível pernambucano, o livro aludido não anota a sua extinção, trazendo até fotografia.

Pois bem. O bolo de milho, com certos intervalos, estou sempre a comer, permanecendo silencioso, para permitir que a figura de meu pai desponte no território de minhas lembranças. A galinha de cabidela, só em restaurante regional. Não me atrai. Do araçá, me contento com o doce, adquirido em Estância ou na Praia do Saco, quando oportunidade surge. Mas, do tijolo, ah, do tijolo a saudade lateja, numa vontade imensa de, em um dia de sábado, de preferência nublado, com chuva fina, percorrer, de novo, a feira de Itabaiana, de barraca em barraca, no cotejo da paisagem de hoje com a de ontem, invadido pela imagem do menino de calças curtas, a abrir a gaveta da loja onde o pai guardava dinheiro miúdo, a fim de se munir de uma nota de dois cruzeiros, com retrato do Almirante Tamandaré, para, na barraca próxima, bem feliz, comprar dois tijolos.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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